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Um trabalho DIVERGENTE

A work by DIVERGENTE

Esta é uma reportagem dividida
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“O que nos fizeram
foi uma traição”

Em miúdo, embalado pelo som das aves e dos mistérios do mangal, Juldé Jaquité costumava percorrer com o pai as águas do rio Cacine, no Sul da Guiné. Juntos, a bordo de uma canoa de madeira, apanhavam peixe para vender no mercado e alimentar toda a família. Quando a festa que celebrou o “Golpe de Spínola” teve um fim, esta era para Juldé uma memória distante, um passado impossível de se repetir. Nos meses que se seguiram a Abril de 1974, sentia-se perdido, os pensamentos atormentavam-no. Só mesmo os cigarros — um atrás do outro — pareciam ser capazes de lhes pôr um travão.

 

O silêncio, quando invade, pode ter muitas formas: a de um rio que corre sem desafiar as leis da natureza; a do medo de quem sustém a respiração para não ser descoberto; a da raiva acumulada, ano após ano, proibida de explodir. A tropa, a guerra, roubaram-lhe a juventude. Seria mesmo possível que, agora, este limbo a que chamavam “paz” tivesse chegado para lhe interditar a vida adulta?

Em Setembro de 1974, Juldé, um homem possante de quem o Exército português fez furriel dos comandos, deixou Bissau e partiu em fuga para o Senegal. Saiu sem nenhuma certeza, nem mesmo das razões que o levavam a querer desaparecer. Não esquecia, não tinha como esquecer, a noite em que, à socapa, o ex-marido da mulher lhe bateu à porta e o alertou: “Juldé, sai de Bissau e vai para o Senegal. Estou a dizer-te isto porque trataste bem dos meus filhos, não te posso trair. Sei que o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] vai matar todos os comandos, incluindo os graduados. Vão todos morrer.” Quase 50 anos depois, Juldé garante continuar a ser capaz de reproduzir as miudezas deste encontro:

“Respondi-lhe que não ia a lado nenhum, que não tinha motivos para fugir. Ele pediu-me para não dizer a ninguém o que me tinha contado, ou o matariam. Entrou no jipe e foi-se embora. Eu sentei-me a fumar.”

Joaquim Boquindi Mané

Furriel

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Depois da festa, vieram dias difíceis. Prenderam muitos comandos, diziam que éramos brancos. Quem tivesse combatido ao lado dos brancos, era castigado. Diziam que éramos colonos, que tínhamos feito ostentação e que, agora, quem mandava eram eles. Muitas pessoas diziam: ‘Larguem-nos, a guerra já acabou. A guerra é que nos fez inimigos, mas agora somos irmãos. Deixem-nos.’”

A 8 de Outubro, os comandos metropolitanos regressaram a Lisboa. Por essa altura, os militares africanos da mesma unidade estavam ainda convencidos de que iriam ser os futuros “coronéis da Guiné”, recorda Florindo Morais que, em Junho, chegou a Bissau para substituir Raul Folques na liderança do batalhão. VIDEO

Faziam fé na solidez da palavra dita, fé nas esperanças que lhes tinham sido plantadas. Fé num país que não escolheram, mas pelo qual tinham jurado morrer se assim fosse necessário. O mesmo país que se preparava para deixá-los para trás, abandonados à sorte, extraviados.

Recusavam aceitar que as promessas feitas pelo general Spínola — “os comandos africanos serão os futuros líderes da Guiné”, “a Guiné para os guinéus” — nunca passariam disso mesmo, promessas.

Fontes:

 

“Spínola”, Luís Nuno Rodrigues

 

“Fim do Império — últimos meses de vida do Batalhão de Comandos da Guiné”, Mama Sume — Revista da Associação de Comandos, n.º 83, Florindo Morais

Quando foi declarado o “cessar fogo” entre o Exército português e a guerrilha do PAIGC, as companhias de comandos africanos dispunham de “alguns chefes de prestígio” e de uma “importante capacidade bélica”. Representavam, por isso, uma “incógnita para todas as forças políticas interessadas no processo de descolonização da Guiné”, lê-se no documento que resume as actas escritas pelas Forças Armadas Portuguesas (FAP) entre Agosto e Setembro de 1974.

Para o Governo português, uma aliança destes homens com o PAIGC poderia precipitar a retirada do Exército, obrigando o país a aceitar condições desvantajosas impostas durante as negociações. Para o PAIGC, a hipótese de os comandos africanos se poderem aliar a forças políticas opostas representava uma ameaça que queriam evitar. No meio, estavam homens que garantiam “não ser políticos, mas sim militares”.

“[...] Não somos políticos, mas sim militares, unidos pela realização dum fim digno e justo, na comunhão de ideias com todos os nossos irmãos, filhos da mesma terra, atirados uns contra os outros por um regime político fascista-colonialista. [...]

É no Batalhão de Comandos que se encontram presentemente os militares africanos mais graduados e experientes, sendo esta uma unidade de elite que constitui a ‘pedra de toque’ de todas as unidades africanas, pelo que deverá ser à sua volta que todas as restantes forças africanas se devem unir [...]

Não entraremos em jogadas sujas dos mal-intencionados que serão corridos do nosso meio se pretenderem criar um clima de indecisão, insegurança e desconfiança no nosso seio.

Medidas imediatas a tomar:
. As nossas forças devem manter-se unidas em todas as circunstâncias.
. Respeitar as hierarquias dentro da maior disciplina e respeito mútuo.
. Salvaguardar o respeito dos nossos superiores e camaradas.
. Intensificar a instrução e a formação de todos os militares, melhorando o espírito de disciplina e a preparação física.
. Castigar os desordeiros e todos os que infrinjam os regulamentos de disciplina.
. Abolir por completo os factores étnicos que nos possam dividir.

Não temos medo de ninguém desde que sejamos unidos, fortes e disciplinados, mas respeitaremos todos os que lutaram pelos fins últimos do bem-estar e progresso do povo.”

Glória Alves

2.º Comandante do Batalhão de Comandos da Guiné depois de Abril de 1974

“Eu estava habituado ao fogo a sério; à dissimulação e essas coisas nunca me habituei. Era uma incerteza. Se arranjasse uma palavra para definir aqueles tempos, era incerteza. Nunca sabia quando é que me poderiam ir buscar a casa e me encostavam a uma parede.”

Por essa altura, Juldé ouviu falar de uma lista que reunia os nomes daqueles que queriam ir para Portugal. Dirigiu-se ao Gabinete do 2.º Comandante do Batalhão de Comandos decidido a deixar a única terra que até então conhecera — era esse o preço que estava disposto a pagar pela vida. Mas Glória Alves descansou-o: “Ainda estamos a juntar os nomes das pessoas que querem ir. Não te preocupes.”

Entre Maio e Agosto de 1974, enquanto as comitivas portuguesas e do PAIGC tentavam chegar a acordo para a transferência de poderes, o “problema dos comandos” foi inúmeras vezes apontado como uma das principais questões a resolver.

Durante este período, as três companhias continuaram armadas. Só depois de 19 de Agosto, aceitaram entregar o cinturão, as botas, a farda, o brasão e as armas. Em troca, o governador Carlos Fabião ofereceu-lhes quatro meses de salário adiantado, com a indicação de que deveriam apresentar-se no Quartel de Brá, em Bissau, no dia 1 de Janeiro de 1975, pelas oito horas da manhã.

“Disseram-nos que voltaríamos ao trabalho em Janeiro… O que nos fizeram foi uma traição. Não pode ter outro nome”, acusa Juldé. “Traição” é a palavra a que, uma e outra vez, os comandos africanos da Guiné recorrem para descrever o que se passou. Muitos guardam, até hoje, a prova do que relatam num papel amarelado carcomido pelo tempo.

Cronologia de uma negociação

Cronologia de uma negociação

Cronologia de uma negociação

1 de Junho de 1974 | Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, dá uma entrevista ao jornal Jeune Afrique, na qual declara que os militares africanos que combateram no Exército português são uma “questão” para a Guiné-Bissau resolver.

14 de Junho de 1974 | Representantes dos comandos africanos encontram-se com o governador Carlos Fabião e dizem aceitar o PAIGC, desde que possam vir a desempenhar um papel importante no futuro da Guiné-Bissau.

Julho – Agosto de 1974 | As delegações portuguesa e do PAIGC encontram-se na mata de Cantanhês para negociar os moldes da transferência de poderes. O Batalhão de Comandos da Guiné é um assunto omnipresente, considerado “o problema mais sério” para resolver. Nem Portugal nem o PAIGC querem ficar responsáveis pelos militares que o integram.

 

Cronologia de uma negociação

15 de Julho de 1974 | O Batalhão de Comandos da Guiné emite um comunicado em que apela a que todos os militares africanos se unam, com o objectivo de encontrarem um fim “digno e justo” para a situação em que se encontram.

30 de Julho de 1974 | O comandante do Batalhão de Comandos da Guiné, Florindo Morais, convoca uma reunião entre os comandos africanos e a delegação militar do PAIGC, para que possam debater o futuro depois da independência.

Cronologia de uma negociação
Cronologia de uma negociação

19 de Agosto de 1974 | A tropa africana da Guiné começa a ser desarmada, e os seus efectivos passam à disponibilidade.

26 de Agosto de 1974 | É assinado o Acordo de Argel, e ratificada a independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde.

7 de Setembro de 1974 | O Batalhão de Comandos da Guiné é desactivado e extinto.

10 de Setembro de 1974 | Portugal reconhece a independência da Guiné-Bissau, já declarada pelo PAIGC a 24 de Setembro de 1973.

Cronologia de uma negociação

24 de Setembro de 1974 | Data em que o PAIGC decide celebrar o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau. Nas matas do Boé, marcam presença as delegações dos Governos português e bissau-guineense.

19 de Outubro de 1974 | O último contingente da comitiva portuguesa deixa Bissau.

1 de Janeiro de 1975 | Militares africanos manifestam-se em frente à embaixada de Portugal em Bissau e exigem saber como será o seu futuro.

1975 – 1979 | Pelo menos 54 comandos africanos são assassinados nas matas de Cumeré, Portogole, Mansoa e Bambadinca.

Bubacar Djaló

Soldado

 

2.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Sei que algumas pessoas andaram a reunir nomes e a mobilizar homens para se oporem ao novo regime. Diziam que tinham armas e precisavam de especialistas dos comandos, mas eu nunca vi essas armas. Contactaram-me quando estava em Mansoa, mas eu não estava interessado. Disseram-me que havia um grupo de oficiais do PAIGC que queria fazer uma revolta e precisavam de homens para os ajudar. Tinham uma lista de nomes donde constavam os homens mobilizados. Foi aí que começaram as prisões: qualquer um que tivesse o nome nesse papel tinha a vida vasculhada e já se sabia… A lista de nomes foi recolhida por homens do PAIGC e alguns oficiais dos comandos africanos. Desde o começo que havia discórdia dentro do PAIGC.”

Lamine Camará

Soldado

 

2.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“O 25 de Abril aconteceu, mas nós não sabíamos o que era. Depois, houve aquelas negociações entre o PAIGC e o Governo… Éramos para ir todos para Portugal, mas os nossos oficiais superiores comprometeram-nos naquelas negociações. A guerra acabou, devíamos unir-nos, mas não veio a ser assim. O PAIGC estava de um lado, lutaram pelo bem-estar da Guiné-Bissau; nós lutámos pelo bem-estar dos colonizadores. Eu deitei todos os documentos na casa de banho, afundei-os… Faziam rusgas, batiam à porta, abriam, olhavam e, se vissem que eras comando, levavam-te. Se não tivesses sorte, matavam-te; se tivesses sorte, salvavas-te. Nós entregámos tudo ao Exército português — meias, cuecas, farda, botas, boina. Levaram tudo. O que é que faltava para me descontarem?”

O 2.º comandante do batalhão, Glória Alves, diz que foram os comandos africanos que retiraram o nome da lista que os identificava como querendo ir para Portugal. Florindo Morais, 1.º comandante do grupo, confirma o relato. Apesar disso, nenhum dos dois responsáveis é capaz de garantir como o processo aconteceu. Foram mesmo todos os que tinham o nome na lista a desistir? Houve alguém a precipitar essa decisão? O que terá levado estes militares a deixarem de querer ir para Portugal? São todas perguntas que continuam sem resposta. Ainda assim, Florindo Morais tenta uma explicação: “Na altura, vim a Lisboa de propósito e falei com o Almeida Bruno [major e 1.º comandante do Batalhão de Comandos da Guiné] no Palácio de Belém, que me disse para trazer quem eu quisesse. Quando cheguei à Guiné, disse ao Glória Alves para abrir uma lista para os que se quisessem inscrever. Inscreveram-se uma data deles, mas, a determinada altura, o general Fabião fez uma jogada: como o orçamento para 1974 estava aprovado, ofereceu aos comandos os salários dos meses que faltavam até ao fim do ano, pagou-lhes adiantado e eles aceitaram passar à disponibilidade lá.”

Juldé Jaquité desconhece quem o “traiu” neste processo, mas, garante, “alguém teve de ser”. Jura a pés juntos que deu o nome para ir para Portugal e que nunca o retirou da lista. Os corpos, antes extasiados da celebração, foram, pouco a pouco, enrijecendo. Um clima de tensão tomou conta da euforia, uma nuvem de zunzuns começou a circular e a espalhar-se por todo lado.

Em Setembro de 1974, Portugal reconheceu a independência da Guiné-Bissau e, dois meses depois, retirou-se do território. Por essa altura, a fuga de Juldé Jaquité tinha apenas começado. Só em 1981, cinco anos depois de ter conseguido passar a fronteira norte da Guiné com o Senegal, apanhou o avião de Dakar para Lisboa. Sobreviveu, ainda hoje não sabe bem como: “Foi sorte”, “foi Deus”.

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“Escangalharam-me
na prisão”

Depois de as Forças Armadas o passarem à disponibilidade, Mário Sani começou a trabalhar como taxista em Bissau. Lembra-se de ter ficado feliz com o 25 de Abril e a saída dos portugueses: “Era a independência, estava livre!” Até 1976, levou uma vida de casa-trabalho, trabalho-casa. Sabia que quanto mais despercebido passasse, maiores seriam as hipóteses de não ser preso; ou simplesmente de desaparecer, como sucedera a outros camaradas dos comandos. Um dia, receando que a sua vez estivesse para chegar, decidiu fugir para Bafatá, uma cidade no Leste da Guiné-Bissau — queria atravessar para o Senegal.

“Apanharam-me a uma quarta-feira por volta das cinco e meia da tarde e trouxeram-me de volta. Perguntaram-me se tinha estado nos comandos, eu disse que sim. Pegaram-me na camisa, tiraram-me as calças, deixaram-me nu como um recém-nascido. Amarraram-me as mãos atrás e deitaram-me dentro do abrigo. Pisotearam-me, partiram-me todos os dentes na boca, deram-me pontapés, amarraram-me com uma corda como se fosse um animal morto pendurado. Escangalharam-me na prisão. Quando me desamarraram, estava paralisado — não podia estender os braços, não podia caminhar. Estive preso em Bissau seis meses, depois levaram-me para Caraxe.”

Caraxe é uma ilha do arquipélago das Bijagós que funcionou como uma prisão a céu aberto. Mário esteve lá até 1979, quando um médico cubano o ajudou a escapar.

Mário Sani

Soldado

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos

“Vim, mas vim com dúvidas. O meu irmão mais novo disse-me que já não havia problemas e, quando cheguei, confirmei que era verdade. Essa fotografia na parede… Olho para ela e lembro-me da minha vida. É triste. Não há ninguém que me diga ‘vou ajudar-te’. Ninguém. Não tenho meios, estou doente. Estou aqui na esperança de que um dia Portugal venha ajudar-me… Mas não é possível, já tirei essa hipótese da cabeça. Se tivesse boa saúde, trabalharia. Mas já não posso, ando com dificuldade, esta anca não tem nenhuma força. Nem um balde de dez quilos posso levantar, por causa da fraqueza. Não é possível.”

Depois disso, nunca mais parou de fugir. Senegal, Guiné-Conacri, Costa do Marfim, o soldado da 1.ª Companhia de Comandos Africanos diz ter percorrido, sempre em fuga, toda a África Ocidental. É um corpo mirrado, sentado no alpendre da casa onde nasceu, na cidade de Mansoa, que conta esta história. Uma miragem do homem forte e de olhar viçoso que fisga quem passa a partir da fotografia pendurada na parede da sala. Mário só voltou à Guiné-Bissau a 6 de Abril de 2006, o seu único filho contava já 31 anos e a mulher com quem casara há mais de três décadas tinha outra família.

Desde então, vive sozinho numa casa recheada com duas cadeiras, um colchão, e a fotografia de uma juventude cristalizada que, quando a recorda, lhe embarga a voz: “Como é possível que eu já tenha sido assim?” Hoje, já só guarda uma esperança na vida: “voltar” a Portugal para ser reconhecido como militar do Exército e fazer os tratamentos médicos de que precisa. Usa o verbo “voltar” porque foi esse o país onde nasceu, ainda que nunca tenha posto os pés na Europa.

A 30 de Agosto de 1974, foi assinado o Acordo de Argel e oficializada a transferência de poderes do Governo português para o PAIGC. O documento garantia a reintegração da “força africana” na nova vida civil da Guiné-Bissau e referia ser responsabilidade do Estado português o pagamento das pensões de sangue, invalidez e reforma de todos os que combateram no Exército. A 7 de Setembro do mesmo ano, o Batalhão de Comandos foi desativado e extinto. A 19 de Outubro de 1974, o último contingente da comitiva portuguesa deixou Bissau.

Mal a guerra deu sinais de acalmar, Luís Hernâni Quecói Turé voltou para Farim, a cidade onde nasceu, e dedicou-se à sementeira. “Se ficasse só de braços cruzados, o que é que iria comer nos dias seguintes?”, pergunta-se. Diz que não fez nada de mal, que não cometeu nenhum crime. E que, por isso, nunca lhe passou pela cabeça fugir. Ter combatido ao lado dos que perderam a guerra pouco o importava.

Luís Hernâni Quecói Turé

Soldado

 

2.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Sim, perdemos a guerra. Se fiquei contente? Fiquei, porque não perdi um olho, não fiquei sem braços nem pernas. Entrei inteiro e saí inteiro, só isso já é uma grande coisa. Mas as armas não acabam uma guerra, o que acaba uma guerra é a caneta.”

Um dia, um homem chegou e pediu-lhe ajuda para pintar um carro — “foi a 7 de Março, o ano é que já me esqueci”. Mal entrou na viatura, apareceram logo os militares que o levaram para a prisão, onde ficou quatro dias. Depois, depositaram-no num abrigo de pedra e deixaram-no lá fechado durante um ano. Perguntaram-lhe quem é que o tinha mobilizado, se pensava fugir para o Senegal, se estava em contacto com outros comandos. Respondeu “não” a tudo: “Na verdade, eu não sabia mesmo de nada, nunca pensei fugir e deixar a minha mãe e o meu filho para trás, não podia fazer isso.”

Mamadu Camará

Soldado

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Os comandos tiveram de fugir. Os que não foram capturados, foram para o Senegal. Se não, prendiam-nos e matavam-nos. Eu continuei como condutor de táxis em Bissau. Um dia, estava no mercado do Bandim, e alguém disse: ‘Este cabelo é para queimar!’ Iam-me queimar o cabelo todo, nessa altura não o cortava, deixava-o grande. Fiquei calmo, conformava-me com tudo. Sabia que, se respondesse, era eu quem ia passar mal, então calava a boca. Aguentava porque tinha família, tinha mulher, tinha filhos…”

Dos meses de cativeiro, Quecói Turé guarda as chagas deixadas pelos cigarros que lhe foram apagados no corpo, e a memória do momento em que teve de cavar a cova onde o queriam enterrar vivo: “Terminei o buraco e fiquei lá dentro de pé. Ao fim da tarde, quando escureceu, disseram-me ‘Podes ir para casa.’” Ainda hoje, desconhece os motivos por que o pouparam. À falta de justificações racionais, agarra-se ao transcendente: “Foi Deus, só pode ter sido Deus.”

Lamarama Djaló

Furriel

 

2.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Quando soubemos do fim da guerra, ficámos todos contentes, abraçámo-nos muito como irmãos. Depois do 25 de Abril, passámos à disponibilidade e voltámos para a nossa terra natal, que era já a República da Guiné-Bissau. Todos os que ficaram eram bissau-guineenses. Trocámos o bilhete de identidade — de português para cidadão da Guiné — e todas as pessoas entregaram as armas. Pode-se dizer que foi a sorte ou Deus quem me livrou do fuzilamento. Havia perseguições, aprendi a identificar o PAIGC, a saber quem é que eram.”

Mamadu Camará

Soldado

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Alguém que viveu todo o tempo na guerrilha, não sabe o que fazer com um país, não sabe o que é a administração. Foi isso que nos trouxe problemas. Vieram e fuzilaram a antiga tropa comando. Foi um grande erro, podiam ter aproveitado essa gente para formação. O PAIGC veio de fora, não sabia o que se passava aqui.”

Quando, em Agosto, aceitaram os quatro meses de salário adiantado, os comandos não sabiam estar a aceitar um corte radical com as FAP. A guia que assinaram dizia que se deveriam apresentar em Janeiro de 1975 no quartel — foi isso que fizeram, mas já não estava lá ninguém para os receber. Revoltados, vários militares portugueses reuniram-se em frente à embaixada de Portugal em Bissau. “Soube, mas não fui. Ir a Bissau para quê, só para gastar dinheiro? Melhor comprar peixe e comê-lo em casa”, conta Galé Jaló, soldado da 1.ª Companhia. Já Lamine Camará, soldado da 2.ª Companhia, recorda como “brutal” o que lá se passou: “Recrutaram polícias e tropas para nos expulsarem. Bateram-nos mesmo à porta da embaixada.” Poucos meses depois, começaram as execuções sumárias.

Que se saiba ao certo, até 1979, pelo menos 54 comandos africanos foram assassinados nas matas de Cumeré, Portogole, Mansoa e Bambadinca, muitos deles graduados (oficiais e sargentos); mas os relatos que se ouvem por toda a Guiné-Bissau apontam para muitos mais. Ainda hoje, são várias as pessoas capazes de identificar as valas comuns onde os corpos de sipaios, chefes de tabanca e militares de diferentes companhias do Exército português foram depositados.

Fontes:

 

“Guerra, paz e fuzilamento dos guerreiros”, Manuel Amaro Bernardo

 

Documentos consultados no arquivo pessoal do coronel da Infantaria do Exército português Raul Folques

Esmagados os traidores

Esmagados os traidores

Esmagados os traidores

No rescaldo da tentativa de golpe de Estado encabeçada por António de Spínola a 11 de Março de 1975, o jornal bissau-guineense Nô Pintcha abriu a primeira página com o título “Esmagados os traidores e inimigos do povo”. Noticiou uma “tenebrosa conspiração” — que previa “actos de terrorismo” e visava a “liquidação física” de elementos do PAIGC. E deu conta da prisão de oito comandos africanos: Zacarias Saiegh, Adramane Cisseko, Justo Nascimento, Tomás Camará, Sicre Marques Vieira, Aliu Queta e Paulo Rodrigues. De todos, sabe-se hoje, Paulo Rodrigues é o único que não foi fuzilado.

Esmagados os traidores

A história de Tomás Camará, tenente da 1.ª Companhia de Comandos, é uma das que mais ficaram na memória dos que viveram este período. Regressara de Lisboa, onde tratara um ferimento de guerra, quando o prenderam. Segundo vários relatos, tinham passado apenas minutos desde que aterrou no aeroporto de Bissau quando foi levado para Cumeré, onde viria a ser fuzilado.

Esmagados os traidores

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“Não podia ter medo, porque o meu marido estava lá”

Tal como Quecói Turé, Malam Samá deixou Bissau e voltou para Farim. Presos no mesmo dia, foram ambos levados para um abrigo subterrâneo do qual contam histórias de espancamento, tortura, e relatam episódios de homens mortos por asfixia. Nessa mesma altura, a mulher de Malam estava grávida do primeiro filho de ambos. Tinham casado quando “a guerra ainda estava quente” e, apesar de ter sido uma união arranjada pelas famílias, Aminata Sani recorda ter gostado do “seu homem” mal o conheceu: “Quando o vi, gostei dele. Agora é que está velho, mas dantes era bonito.”

Pouco depois de o bebé nascer, Aminata levou-o à prisão para que pai e filho se pudessem ver, tocar, cheirar… Malam pegou o menino nos braços e ali ficou, durante muito tempo. A hipótese de os guardas puderem barrar-lhe a entrada nunca a assustou. Sempre que era preciso, fazia frente aos polícias: “Mulher e marido são assim, somos família. Não podia ter medo, porque o meu marido estava lá. Prenderam muitos comandos, pensei que talvez o iriam matar, mas Deus ajudou-o.” Nas veias de Aminata correm sagacidade e obstinação, pouco mais de uma frase é quanto basta para que isso se perceba. Hoje, como há 40 anos, é uma mulher fortaleza.

Eram perto das 10 da manhã de um dia e de um ano que não conseguem precisar, quando Malam foi liberto. Passou seis meses na prisão, acusado de pertencer à Frente de Luta para a Independência da Guiné (FLING), um movimento criado em Dakar em 1962, com o objectivo de alcançar a independência da Guiné, e que terá planeado, durante a luta de libertação, ocupar as bases do PAIGC para tomar a dianteira da guerra. Aminata estava a lavar roupa, inclinada sobre um alguidar, quando lhe disseram “Está aqui o teu marido”. Até se assustou. Malam garante que, na altura, “nem sabia o que é que era a FLING”. Houve homens, como Quecói Turé, que ficaram com o corpo “todo arruinado”, mas ele, “graças a Deus”, safou-se. Tal como já acontecera quando estava na mata, acredita ter sido a mezinha feita pelo pai e a comida que, todos os dias, a mulher lhe levava à prisão a darem-lhe um empurrão à sorte.

Fonte:

 

“Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau”, Leopoldo Amado

Com o fim da guerra, os comandos africanos tornaram-se nas principais vítimas de um caldeirão político e social em ebulição. Durante a presidência de Luís Cabral, estes homens foram considerados traidores e tornaram-se alvo de uma purga: presos e torturados, muitos foram executados sumariamente. “As prisões começaram a 12 de Março de 1975, foi inventada uma tentativa de Golpe de Estado da FLING na Guiné, e prenderam os comandos todos”, conta Florindo Morais. O apoio dos comandos africanos à tentativa de golpe dirigida por António de Spínola a 11 de Março de 1975 é mais uma das ligações de que se fala e nunca foi provada.

“(…) Ainda hoje penso que no PAIGC devem ter aproveitado a altura do 11 de Março de 1975 para começar a arranjar um pretexto para proceder a esses fuzilamentos (…) No próprio dia 11 de Março, estava eu já em Lisboa e telefona-me de Bissau um dos dirigentes do PAIGC a comunicar-me que o 11 de Março tinha raízes na Guiné, que tinham até prendido uma série de pessoas. Perguntei como era isso, o que significava etc., e ele disse-me apenas que estavam a fazer averiguações… Entretanto, mete-se o Verão Quente e eu, dado estar aqui envolvido em muita confusão, não dei tanta atenção à Guiné, como devia… E soube mais tarde que eles tinham fuzilado uns quantos…”, contou em entrevista Carlos Fabião, governador da Guiné entre Maio e Outubro de 1974.

Fontes:

 

“Ordem para matar: dos fuzilamentos ao caso das bombas da embaixada da Guiné”, Queba Sambu

 

“Do fundo da revolução”, Maria João Avillez

Helena vive até hoje atormentada com a recordação do dia em que os colegas do marido, Paulo Rodrigues, lhe encheram o quintal: “Cozinhei para aquela gente toda: comeram, beberam e cada um foi para sua casa. Nessa mesma madrugada, prenderam-nos a todos aqui em Bissau. Nenhum escapou, nem um só está vivo. Nessa altura, achei que iria ficar viúva.”

Luís Cabral

Primeiro presidente da Guiné-Bissau

“[Os fuzilamentos] foram casos pontuais. A lei militar previa a pena de morte, por isso nunca terão sido resultado de caprichos ou de ressentimentos. Louvo as actividades dos meus companheiros da Justiça Militar. Cumpriram a sua missão, de certeza, sem cometerem abusos nenhuns. Por isso não tivemos guerras civis como em Moçambique e em Angola. Os comandos portugueses cometeram crimes incalculáveis nas áreas que tínhamos libertado. Mataram mulheres grávidas e abriram-lhes a barriga para castigar as populações. […] Se ele [Nino Vieira] sabia onde estavam [as valas] era porque participava nesses actos. Eu nunca tive conhecimento de valas comuns. O Nino precisava de inventar um pretexto porque traiu os objectivos da nossa luta. Para justificar uma traição, todas as mentiras são possíveis.”

Livro "Guerra, paz e fuzilamento dos guerreiros", Manuel Amaro Bernardo

Paulo, sargento da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, viria a ser preso uma semana depois deste episódio. É o único militar graduado dos Comandos Africanos ainda vivo. Em 2018, oficializou a união com a mulher: “Ele precisava desses papéis do casamento para pedir a reforma militar e ir tratar da saúde em Portugal. Agora, está lá.” Helena é magra e tem uma voz frágil, um corpo gasto pelos anos e pelo trabalho que é carregar às costas uma família inteira. Hoje, só fala com o marido por telefone. Lá no fundo, sabe que dificilmente se voltarão a ver.

Em 1980, Nino Vieira liderou o golpe de Estado que ficou conhecido como o “Movimento Reajustador” e separou, definitivamente, a Guiné-Bissau de Cabo-Verde. Aquele que tinha sido o presidente da Assembleia Nacional Popular do PAIGC, durante a luta de libertação, e primeiro-ministro do país entre 1978 e 1980, reivindicava agora a Guiné para os guineenses e a autenticidade da sua cultura.

Fonte:

 

“Dos sonhos e das imagens: a Guerra de Libertação na Guiné-Bissau”, Catarina Laranjeiro

Pedro Pires

Comandante do PAIGC na Frente Sul entre 1969 e 1974 e presidente de Cabo Verde entre 2001 e 2011

“Os conflitos eram enormes. Como integrar no mesmo exército pessoas que se opuseram [ao PAIGC] durante todo o tempo? Qualquer integração nas Forças Armadas era extremamente arriscada. Os processos pós-guerra são complicados, temos dificuldades em compreendê-los na sua totalidade. Há o aspecto físico, o aspecto económico, mas também o aspecto mental: O que é que as pessoas estão a pensar? Do que é que estão a desconfiar? Os fantasmas, os pesadelos… Do meu ponto de vista, devemos pensar que são fenómenos, são situações de gestão muito complicada. Estaríamos em condições de compreender isso na altura? Eu acho que não. Ultrapassava-nos e ultrapassava qualquer um.”

“Para chegar ao poder, o Nino disse que não sabia de nada do que se passava. Mas será que não tinha conhecimento dos fuzilamentos? Tinha… Esteve dez anos com o PAIGC”, acusa Juldé Jaquité.

Os governantes mudaram, mas o clima de violência velada manteve-se, aniquilando com prisões arbitrárias, perseguições e fuzilamentos todos os que, desta vez, fossem considerados opositores ao novo líder.

A saída de Portugal dos territórios que explorava em África decorreu ao longo de pouco mais de um ano, num processo a que na Europa se dá o nome de “descolonização”, e em África de “libertação”. A Guiné-Bissau foi o primeiro país a ser reconhecido como independente por Portugal, a 24 de Setembro de 1974. Em Moçambique isso só viria a acontecer a 25 de Junho de 1975, e em Angola a 11 de Novembro do mesmo ano.

O ruído da festa que celebrou o fim da guerra foi ocupado por um eco silencioso de medo e abandono. “Os portugueses têm o nome de toda a gente que foi à tropa, deveriam chamar os que estão vivos e ficaram na Guiné. Agradecemos que haja bom senso, que Portugal reconheça os africanos que deram a vida para defender os interesses da pátria. Pessoas que foram presas e mutiladas. Pessoas que estão velhas, cansadas e sem nada.” As palavras saem da boca de Lamarama Djaló, furriel da 2.ª Companhia de Comandos, mas o brado de revolta é uníssono. Só mesmo a morte que, pé ante pé, se vai apoderando da velhice destes homens parece ser capaz de o calar.

Por graficamente não ser possível a identificação individual de cada uma das imagens, enumeramos aqui a sua origem e cota.

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