Esta é uma reportagem dividida
em quatro capítulos.
Se ainda não o fizeste,
começa por ler os anteriores.
This is a report divided
into four chapters.
If you haven’t already,
start from the beginning.
“Portugal é a minha terra”
No alpendre da casa de onde viu passar a vida, Helena dá três passos em frente e pára de olhos expectantes. “O Paulo morreu?”, ecoa no ar, como um burburinho. Apoiada sobre duas pernas trémulas, pede-nos para voltar mais tarde — a receita dos remédios para o coração aguardava há dias para ser aviada e, durante as manhãs, os anos pesam-lhe ainda mais. “Agora só o vejo, só falo com ele, pelo telemóvel do meu filho. Quando era nova, pensava que a vida seria mais fácil, mas não tenho tido descanso. Continuo a vender filhoses, pastéis, sandes de peixe, para ter dinheiro… Só peço a Deus que ajude o Paulo a receber a reforma”, desabafa.
Paulo Rodrigues não morreu, mas o “mal de garganta” que carregava consigo há anos apoderou-se-lhe da voz e calou-o para sempre. A ele, e à indignação acumulada durante mais de quatro décadas. “Portugal é a minha terra”, repetiu, enquanto pôde, com um timbre que foi ficando cada vez mais rouco, cada vez mais imperceptível.
“Quero ir para Portugal, primeiro, cuidar da saúde, segundo, pedir a minha aposentação. É só o que me interessa agora. Estou a tratar da passagem, dos documentos… Quero ir e depois voltar para a Guiné — aqui é a minha casa, quero ficar perto da família.” Era este o plano em Outubro de 2017, quando ainda não podia prever a trapaça que a vida lhe pregaria. Nessa altura, Paulo dormia com a caderneta militar debaixo da almofada, o único documento capaz de provar aquilo que era: um sargento graduado dos comandos do Exército português.
Casou com Helena pelo civil para que, caso lhe acontecesse alguma coisa, a mulher pudesse ter direito à reforma como viúva de um ex-combatente; pediu ajuda à sobrinha, que vivia em Lisboa, para lhe comprar o bilhete de avião; juntou o dinheiro de que precisava para fazer o passaporte da Guiné-Bissau (43 500 francos CFA — cerca de 66 euros, num país onde o salário mínimo é de 76 euros); e, quando reuniu tudo o que precisava, fez o pedido de visto na Embaixada de Portugal em Bissau.
Esperou, esperou, esperou, esperou… quanto mais o tempo ia passando, quanto mais uma resposta tardava em chegar, mais o estado de saúde de Paulo se agravava.