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Um trabalho DIVERGENTE

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“Portugal é a minha terra”

No alpendre da casa de onde viu passar a vida, Helena dá três passos em frente e pára de olhos expectantes. “O Paulo morreu?”, ecoa no ar, como um burburinho. Apoiada sobre duas pernas trémulas, pede-nos para voltar mais tarde — a receita dos remédios para o coração aguardava há dias para ser aviada e, durante as manhãs, os anos pesam-lhe ainda mais. “Agora só o vejo, só falo com ele, pelo telemóvel do meu filho. Quando era nova, pensava que a vida seria mais fácil, mas não tenho tido descanso. Continuo a vender filhoses, pastéis, sandes de peixe, para ter dinheiro… Só peço a Deus que ajude o Paulo a receber a reforma”, desabafa.

Paulo Rodrigues não morreu, mas o “mal de garganta” que carregava consigo há anos apoderou-se-lhe da voz e calou-o para sempre. A ele, e à indignação acumulada durante mais de quatro décadas. “Portugal é a minha terra”, repetiu, enquanto pôde, com um timbre que foi ficando cada vez mais rouco, cada vez mais imperceptível.

“Quero ir para Portugal, primeiro, cuidar da saúde, segundo, pedir a minha aposentação. É só o que me interessa agora. Estou a tratar da passagem, dos documentos… Quero ir e depois voltar para a Guiné — aqui é a minha casa, quero ficar perto da família.” Era este o plano em Outubro de 2017, quando ainda não podia prever a trapaça que a vida lhe pregaria. Nessa altura, Paulo dormia com a caderneta militar debaixo da almofada, o único documento capaz de provar aquilo que era: um sargento graduado dos comandos do Exército português.

Casou com Helena pelo civil para que, caso lhe acontecesse alguma coisa, a mulher pudesse ter direito à reforma como viúva de um ex-combatente; pediu ajuda à sobrinha, que vivia em Lisboa, para lhe comprar o bilhete de avião; juntou o dinheiro de que precisava para fazer o passaporte da Guiné-Bissau (43 500 francos CFA — cerca de 66 euros, num país onde o salário mínimo é de 76 euros); e, quando reuniu tudo o que precisava, fez o pedido de visto na Embaixada de Portugal em Bissau.

Esperou, esperou, esperou, esperou… quanto mais o tempo ia passando, quanto mais uma resposta tardava em chegar, mais o estado de saúde de Paulo se agravava.

Paulo Rodrigues nasceu português, “até tinha um bilhete de identidade dos antigos”. Mas a lei n.º 308 — A/75 ### determinou que deixariam de ser portugueses todos aqueles que nasceram em Angola, Guiné e Moçambique — funcionários públicos e militares das Forças Armadas incluídos — que não fossem “descendentes até ao terceiro grau” de:

  1. Portugueses “nascidos em Portugal continental e nas ilhas”;
  2. Portugueses nacionalizados;
  3. Portugueses nascidos no estrangeiro de pai ou mãe nascidos em Portugal ou naturalizados;
  4. Portugueses nascidos no antigo Estado da Índia que tivessem querido conservar a nacionalidade portuguesa;

 

A lei “celerada” — como também ficou conhecida por ser vista pelos seus opositores como “facínora”, “malvada”, “capaz de cometer crimes” — determinava, assim, que só conservariam a nacionalidade os cidadãos portugueses nascidos em África que tivessem pais, avós ou bisavós com linhagem europeia ou goesa. António de Almeida Santos, autor da lei e então ministro da Coordenação Interterritorial, confessou que “a questão era particularmente sensível em relação aos portugueses do Ultramar que tivessem lutado integrados nas Forças Armadas portuguesas”, porque “pertencer a essas forças foi sempre, e continua a ser, exclusivo dos que têm a nacionalidade portuguesa”.

Fonte:
“Quase memórias do colonialismo e da descolonização”,
1.º Volume, António de Almeida Santos

“Acrescia o risco de, tendo lutado a nosso lado — ainda que compulsivamente —, contra os seus irmãos de raça, poderem vir a ser malvistos, punidos e até mortos — como terá acontecido no caso da Guiné, pelas autoridades do novo Estado. Dizia-se: podemos nós ser indiferentes a esse risco?” O histórico do Partido Socialista, que foi por quatro vezes ministro entre 1974 e 1983, diz ter ficado em “pânico” e explica, no livro onde conta as suas memórias, o que terá motivado este corte raso:

“Dei por mim em pânico. Sabiam, ao menos, quantos poderiam passar por essa porta escancarada? Não sabiam. Enquanto fazia estimativas, pus os pés na porta. Eu conhecia no que se tinha dado a paralela posição de generosidade de Inglaterra face aos cidadãos da Commonwealth. Uma vertiginosa indianização e africanização da cidade de Londres, além de outras, com reacções violentas da população inglesa.
(...)
Pois todos os soldados africanos? Em dez anos de guerra, à média de cinquenta mil por ano, faziam meio milhão. E as famílias — prolíferas como são — quantos meios milhões faziam? (...) Reconheça-se que os excessos de generosidade podiam sair-nos caros.
(...)
E nunca havia estado no meu espírito ajudar os ex-portugueses africanos a continuarem portugueses em Portugal. Eram portugueses em resultado de uma ficção jurídica da Constituição de 1933, de um delírio salazarista que concebia Portugal e as suas colónias como império uno e em tudo igual do Minho a Timor. Se alguém levou esse mito a sério, não tive culpa disso. O próprio Salazar admitiu, às tantas, que os africanos não faziam parte da Nação portuguesa. Como, assim, podiam ter direito à nacionalidade de uma Nação de que não faziam parte?
(...)
Havia assim que salvaguardar a nacionalidade portuguesa dos que, tendo nascido em território ultramarino, tinham laços de consanguinidade com cidadão português nascido no Portugal europeu.”

Fonte: "Quase memórias do colonialismo e da descolonização", 1.º Volume, António de Almeida Santos

Almeida Santos orgulhava-se de ter “salvo o país de uma ‘catástrofe’” e nunca mostrou arrependimento ou solidariedade pelas sucessivas humilhações que a “mais patriótica das leis” obrigou milhares de africanos a passarem. Este foi o primeiro passo para que se tornasse quase impossível a um militar africano do Exército reivindicar a nacionalidade portuguesa e, consequentemente, as pensões de reforma, sangue e invalidez que o Estado prometera.

Não fosse esta lei e Paulo Rodrigues, por exemplo, teria evitado as filas que fazem curva na Avenida Cidade de Lisboa, em Bissau, onde todos os dias dezenas de pessoas apontam o nome numa folha de papel A4 e esperam horas, debaixo de um sol escaldante, para que chegue a sua vez de pôr um pé dentro da Embaixada de Portugal. Talvez, quando Paulo chegou a Portugal, não fosse também já tarde demais.

Raul Folques

Comandante das 1.ª, 2.ª e 3.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné e coronel de Infantaria do Exército português

“Acho que os militares africanos têm toda a razão e direito. Estavam profundamente convencidos de que eram portugueses. Todo o pessoal que combateu connosco e esteve nas nossas fileiras deveria ter a nacionalidade portuguesa. São portugueses como eu: nasceram em território nacional, foram criados em território nacional… A nacionalidade foi-lhes retirada já depois da independência. Foi um abuso, uma prepotência, é francamente um acto muito ordinário.”

Galé Jaló

Soldado

 

3.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Naquele tempo pensávamos que o PAIGC não tinha razão. No fim é que vimos que os portugueses foram embora e nos deixaram com a nossa gente. Se eles tivessem razão, não tinham ido embora, estariam aqui, não é assim? Quantos anos os portugueses colonizaram a Guiné-Bissau? Cinquenta e tantos anos. Ir à Embaixada de Portugal na Guiné é igual a zero. Já lá fui, mas nem para registar os meus filhos, disseram que não tinham tempo.”

“Não lhe querem dar a nacionalidade porque ele não tem meios de subsistência em Portugal. Foi ferido três vezes em combate, está muito velho, tem um cancro, não está bem. Estamos a tentar que consiga a cidadania e que vá a uma junta médica para ter direito à reforma. A ver se lhe arranjamos um subsídio qualquer, para o homem poder viver cá. Mas não sei se vamos conseguir, é complicado”, desabafou o coronel Raul Folques, comandante de Paulo na 1.ª Companhia de Comandos Africanos entre 1970 e 1974.

Mas de que precisa, afinal, um militar africano que combateu no Exército português até 1974 para ter a carreira militar reconhecida? Para reivindicar os direitos que lhe foram prometidos pelo Estado português?

 

 

 

Perguntas aparentemente simples, a que o Ministério da Defesa Nacional não responde, depois de mais de um ano e dezenas de emails trocados.

“Os ex-combatentes dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa] podem requerer a contagem de tempo de serviço militar para efeitos de aposentação ou reforma?” lê-se no site do Balcão Único da Defesa. A resposta é ‘sim, desde que sejam subscritores da Caixa Geral de Aposentações ou beneficiários do regime de pensões do sistema público de Segurança Social’.”

Os ex-combatentes dos PALOP podem requerer a contagem de tempo de serviço militar para efeitos de aposentação ou reforma?
(...) A Lei n.º 9/2002, de 11 de Fevereiro, para efeitos da sua aplicação pessoal considera como ex-combatentes, entre outros, os ex-militares mobilizados, entre 1961 e 1975, para
os territórios de Angola, Guiné e Moçambique (artigo 1º, n.º 2
alínea a).
(...)
Por último, são considerados ex-combatentes os ex-militares oriundos do recrutamento local que se encontrem abrangidos pelas condições referidas anteriormente.
Nos termos do disposto no artigo 3º da Lei n.º 9/2002, do conjunto de ex-militares acima referidos apenas são abrangidos os ex-combatentes subscritores da Caixa Geral de Aposentações ou beneficiários do regime de pensões do sistema público de segurança social.
Isto é, os ex-combatentes acima mencionados, independentemente do local de recrutamento (território continental ou ultramarino) e da nacionalidade, que não cumpram todos os requisitos já referidos, não são abrangidos pela Lei n.º 9/2002, o que configura um tratamento igual entre os ex-combatentes de nacionalidade portuguesa e os ex-combatentes dos PALOP que prestaram serviço nas Forças Armadas Portuguesas nas condições previstas naquela Lei.
(...)

Fonte: Balcão Único da Defesa

Os pedidos de esclarecimento dados pelo Arquivo do Exército afirmam que “os africanos das ex-colónias não têm direito à reforma porque não descontaram para a Segurança Social”.

Mas esta é uma informação errada. Todos os comandos africanos da Guiné que combateram nas Forças Armadas Portuguesas entre 1971 e 1974 estavam integrados no Exército e, por isso, eram obrigados a descontar para a Caixa Nacional de Aposentações. No Arquivo Histórico Militar são vários os documentos que o comprovam.

01/1974

02/1974

03/1974

04/1974

05/1974

06/1974

07/1974

08/1974

09/1974

10/1974

11/1974

12/1974

01/1973

02/1973

03/1973

04/1973

05/1973

06/1973

07/1973

08/1973

09/1973

10/1973

11/1973

12/1973

01/1972

02/1972

03/1972

04/1972

05/1972

06/1972

07/1972

08/1972

09/1972

10/1972

11/1972

12/1972

01/1971

CGA

02/1971

CGA

03/1971

CGA

04/1971

CGA

05/1971

CGA

06/1971

CGA

07/1971

CGA

08/1971

CGA

09/1971

CGA

10/1971

CGA

11/1971

CGA

12/1971

CGA

O problema é que, como perderam a nacionalidade portuguesa em 1975, não se encontram enquadrados nas leis actuais.  E ninguém — nem as próprias instituições — parece saber ajudá-los. A informação disponível no site do Balcão Único da Defesa é dúbia, as chamadas para pedidos de informação caem ao fim de cinco minutos. E as perguntas enviadas em Maio de 2021 ao Ministério da Defesa Nacional, e diversas vezes reiteradas, continuam sem respostas claras:

De: DIVERGENTE
Para: Ministério da Defesa Nacional
Qual o passo a passo para que um militar africano que combateu no Exército até 1974, e não tem nacionalidade portuguesa, possa pedir as pensões de reforma e invalidez?
De: DIVERGENTE
Para: Ministério da Defesa Nacional
Depois de 1975, quantos pedidos de reconhecimento de carreira militar foram feitos ao Ministério da Defesa por militares africanos que combateram em Angola, Guiné e Moçambique?
De: DIVERGENTE
Para: Ministério da Defesa Nacional
Quais eram as unidades e patentes destes militares?
De: DIVERGENTE
Para: Ministério da Defesa Nacional
Desde 1975, quantos pedidos de reforma foram feitos por militares africanos que combateram em Angola, Guiné e Moçambique?
De: DIVERGENTE
Para: Ministério da Defesa Nacional
Dos pedidos feitos, quantos tiveram resposta? E quantos foram deferidos e indeferidos?

Muitos dos comandos africanos que conseguem iniciar o processo acabam por desistir a meio, sugados por uma burocracia sem fim. Porque não estão familiarizados com os nomes dos papéis que lhes são pedidos; porque não têm como aceder à Internet; porque não há ninguém que lhes explique — de uma forma compreensível — o que fazer.

À distância, na Guiné-Bissau, estas barreiras são ainda mais difíceis de transpor. O visto de entrada em Portugal é a principal. O site do Balcão Único da Defesa informa que a Embaixada de Portugal em Bissau deveria dar uma resposta aos pedidos de contagem de tempo de serviço militar, mas dezenas de militares que fizeram esse pedido garantem nunca ter recebido resposta.

“Se tivesse tido oportunidade, teria ido, mas não há ninguém que me ajude. Se tivesse a minha caderneta, teria possibilidade de arranjar dinheiro para ir a Portugal. Mas sem a caderneta…. a forma como a embaixada nos trata não é boa: marcamos lugar às cinco horas da madrugada, damos o nome para sermos atendidos, mas, numa semana, só atendem nove pessoas. Portugal abandonou-nos, recusou-se a reconhecer-nos, isso não está bem”, queixava-se Lamine Camará, soldado da 2.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné, antes de ter morrido de um acidente vascular cerebral.

O embaixador de Portugal na Guiné-Bissau escuda-se na lei e não assume responsabilidades:

“Esses casos são aqui analisados, são reportados ainda hoje. A nível da assistência na saúde, a nível de pensões de sangue, fazemos tudo aquilo que é legal, que a lei estabelece. O que não é enquadrado ou não é legal, não poderíamos fazer de outro modo, pela simples razão de que obviamente existimos para cumprir a lei”, explica José Rui Velez Caroço.

Em dias de festa, os representantes de Portugal na Guiné-Bissau depositam flores frescas nos talhões onde estão oficialmente enterrados os militares do Exército. Aconteceu em Maio de 2021, numa visita em que o Presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, visitou o Cemitério Municipal de Bissau para prestar tributo aos 400 militares metropolitanos que morreram na guerra e nunca foram trasladados para Portugal VIDEO. Por referir, ficaram os 249 africanos do Exército que, entre 1964 e 1974, também perderam a vida em combate na Guiné. http://link

Meses antes, por altura do 25 de Abril, o chefe de Estado tinha feito um discurso conciliador para lembrar “os que não ficaram na fotografia”, como “os africanos esquecidos”, mas nunca aceitou falar com a DIVERGENTE sobre o tema. ###

Paulo Rodrigues aterrou em Lisboa dois anos depois de ter feito o pedido de visto. A viagem só aconteceu porque o coronel Raul Folques diz ter intervindo junto do adido militar da Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau, o coronel Nuno Duarte. O sonho de décadas havia-se cumprido.
Com os dois pés assentes na Portela, a nacionalidade usurpada e a pensão de reforma e invalidez que lhe tinham sido prometidas pareciam cada vez mais perto.

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“Dêem-me um tiro, mas eu vou entrar!”

Galé Jaló

Soldado

 

3.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

”Quando cheguei, disseram-me para ir aos Antigos Combatentes para me darem o boletim da tropa [emitido pela Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional]. Fiz documentos e mais documentos, mas nunca consegui a reforma. Alguns, trouxe-os; outros deixei-os em Lisboa, deitei-os fora. Não me deram nenhuma justificação, corri por todo o lado até ver que não iria resolver nada. Desisti e não voltei a perguntar. Como não me receberam bem, voltei para casa. Se ficasse lá e alguém me fizesse alguma coisa, iria lembrar-me daquilo por que passei e iria discutir. Antes disso, tirei o meu corpo de Portugal e vim ficar aqui na minha barraca.”

No final da década de 1970, quando “terminou tudo” e conseguiu sair da prisão, Galé Jaló arranjou maneira de ir para Portugal. “Fui ver se recebia o meu dinheiro — um colega tinha-me dito que, se conseguisse lá chegar, teria esse direito. Andei, andei, andei, mas nunca deu em nada — agora resigno-me e confio em Deus.” Galé diz que correu “tudo em todo o lado”, que tratou de papéis e mais papéis e, sem vislumbrar um fim, desistiu. Conheceu Portugal de Norte a Sul a trabalhar na construção civil, e 16 anos depois voltou a Quebo com o sonho intacto na bagagem.

Joaquim Boquindi Mané conta uma história parecida: “Fiquei lá dez anos, trabalhei como guarda nocturno, mas não consegui.” Fez de tudo para ter a reforma, andou “até se cansar” e, no final, pensou: “Bom, talvez seja Deus que não quer. Vou voltar. Pelo menos, na Guiné, tenho bons amigos com quem me dou bem. Embora sejam velhos, são os meus amigos.” Com os anos que passou em Portugal, recuperou a cidadania perdida com a “lei celerada”; mas, à medida que a vida se foi aproximando do fim, a caderneta militar e o passaporte portugueses — documentos em tempos tratados como relíquias — passaram a ser meros símbolos de uma esperança definhada.

JOAQUIM BOQUINDI MANÉ

Furriel

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Um colega meu mandou-me o dinheiro da viagem e fui para Portugal. Fui para receber a reforma, preenchi todos os documentos, fiz tudo o que me pediram. Disse-lhes: ‘Nós trabalhámos para vocês, como é que vamos fazer?’ Naquele tempo, como ainda me faltavam dois anos para a reforma por velhice, vim-me embora. Agora se for lá, vão dar-me a reforma.”

Em Abril de 1983, quando Abdulai Djaló aterrou no aeroporto da Portela, em Lisboa, não tinha nada. Nem família, nem trabalho, nem dinheiro. Foi a Associação de Comandos que o ajudou e lhe arranjou uma casa para ficar, partilhada com outros militares africanos, na Zona J de Chelas, em Lisboa. “Éramos muitos, eu trabalhava nas obras e quando chegava à noite nem cama tinha — encostava uma cadeira à parede para poder dormir.” Um dia, levantou-se de manhã e não aguentou mais. Foi até ao Regimento dos Comandos pedir ajuda a Raul Folques.

”Dêem-me um tiro, mas eu vou entrar!”, ameaçou desesperado. Os guardas não o queriam deixar passar, não acreditavam na história que contava. Mas a algazarra foi tanta que tiveram de o chamar: “O meu comandante desceu do gabinete e veio receber-me à porta, toda a gente ficou de boca aberta. Pôs-me a mão no ombro e perguntou-me pelos outros colegas comandos — quase todos os nomes que dizia tinham sido fuzilados. Contei-lhe a minha história, ele pegou no telefone, e arranjou-me logo um trabalho de três dias numa fábrica de loiças em Sacavém e, depois, como porteiro no Parque de Campismo de Monsanto.” Aí, Abdulai montou a tenda onde viveu 11 anos com a mulher e os filhos que, entretanto, “mandou vir” da Guiné — “no Verão, era um calor enorme”; no Inverno, um “congelador”. Já foi uma “máquina de guerra”, mas hoje é um homem doce. Fala com orgulho da casa que conseguiu comprar e da educação que proporcionou aos filhos, de os ter afastado das armas e aproximado dos livros. VIDEO

Abdulai Djaló

Soldado

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Hoje em dia estou bem, graças a Deus, tenho a minha casa, tenho a minha família. A vossa geração fala da universidade, a nossa geração fala da guerra. Sempre vivemos debaixo do medo. Até aqui em Portugal, há colegas que se lhes pedires para terem esta conversa, não falam. Eu estou a falar aqui porque já não ligo.”

Ao recordar a solidão, o medo e o desprezo de que foi alvo, Abdulai deixa livre a emoção: “Sofri muito aqui em Portugal, fui discriminado… Mas pronto, agora está tudo bem, é melhor este tipo de sofrimento do que ser perseguido e espancado.” Reformou-se em 2013 e hoje recebe uma pensão pelo tempo que trabalhou em Portugal e pelos quatro anos enquanto comando. Diz que foi “muito difícil” conseguir a nacionalidade portuguesa, e ainda aguarda resposta à requisição que apresentou “lá” no Ministério da Defesa: “Pedi-lhes para me aumentarem o grau de ferimento em combate. O médico disse-me que tinha 60% de incapacidade, mas quando fui à Junta Médica Militar deram-me apenas 10%.” Uma diferença que se traduz no valor da pensão que recebe todos os finais de mês.

Durante uma operação, o estilhaço de uma mina deixou-o com uma cicatriz que, sempre que tem oportunidade, exibe numa mescla de orgulho e resignação. Um troféu maldito que o deixou “para sempre com problemas nas costas”, e que os médicos não reconhecem como prova da sua incapacidade. “Mas, olhem, ainda consigo fazer agachamentos. Andei aí uma altura em que tinha dores no corpo, mas depois comprei um colchão japonês — daqueles que ficam junto ao chão — e melhorei. Aquilo é mesmo bom, faz massagem e tudo, é um bom investimento”, conta para aligeirar a conversa, enquanto flecte e estica as pernas em movimentos repetitivos numa demonstração de agilidade.

Malam Samá

Soldado

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Foi um irmão que jogava no Sporting que me ajudou a conseguir o visto e o bilhete de avião para ir para Portugal, em 1990. Preparei a minha reforma enquanto trabalhava nas obras, a Associação de Comandos é que me ajudou a tratar de tudo. Apresentei-lhes os documentos, e disseram-me: ‘Podes circular à vontade, ninguém te vai prender aqui em Portugal.’ Portugal é a minha pátria porque eu vivia no sítio dos portugueses, eles é que me pagavam. Aqui, na Guiné, estou como estrangeiro — tenho nacionalidade portuguesa, passaporte português; nós aqui não contamos como filhos do país, dizem-nos ‘vocês são portugueses’.”

Até hoje, nenhum representante do Estado justificou cabalmente o não pagamento das pensões de sangue, invalidez e reforma a que Portugal se comprometeu com a assinatura do Acordo de Argel ###.

“Foram encontrados documentos no Arquivo e Biblioteca Digital da Secretaria do Ministério das Finanças que demonstram o pagamento de pensões de sangue a ex-combatentes das ex-colónias, quer da República Popular de Moçambique (1979), quer da República da Guiné-Bissau (1981 e 1982), por conta do Estado português”, confirmou Margarida Peixoto, assessora de imprensa do Ministério de Estado e das Finanças. No caso da Guiné-Bissau, existem cinco processos que não tiveram seguimento ### , e um deferido.

Em 1983, depois de um longo processo de negociação ### e sem que os militares guineenses tivessem uma palavra a dizer, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 18/1983 ### definiu que o pagamento dessas pensões seria transferido para o Estado bissau-guineense; em troca, Portugal perdoaria à Guiné-Bissau uma dívida de juros vencida no valor de 200 milhões de escudos [998 mil euros].

“O Conselho de Ministros, reunido em 6 de Janeiro de 1983, resolveu (...) autorizar que o crédito da Guiné-Bissau sobre o Estado Português — resultante do pagamento de pensões de preço de sangue e invalidez, de sobrevivência e aposentação devidas pelo Estado português, respectivamente, a cidadãos guineenses que serviram nas Forças Armadas Portuguesas e a funcionários públicos portugueses residentes na Guiné-Bissau — seja utilizado para pagar, mediante compensação, os seguintes encargos da República da Guiné-Bissau em Portugal.”

Fonte: Resolução do Conselho de Ministros n.º 18/1983

E foi assim que a responsabilidade do pagamento de pensões dos efectivos das Forças Armadas recrutados na Guiné foram transferidos para a mesma força política contra a qual esses militares lutaram durante a guerra — o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), no poder até então. Ainda assim, e apesar desse acordo, o Estado português continuou a conceder a reforma aos militares africanos que conseguiram recuperar a nacionalidade e deram provas do seu envolvimento no Exército. Abdulai Djaló e Malam Samá são dois desses casos.

Por um lado, Portugal trespassa a dívida que tem com os seus militares e “ex-cidadãos” para a Guiné-Bissau; por outro, ignora este acordo e concede a reforma às pessoas que, chegadas a Lisboa, conseguem dar andamento ao processo. Um limbo legal que advogados e representantes políticos parecem não ser capazes de explicar.

De: DIVERGENTE
Para: Ministério do Estado e das Finanças
Que mecanismos foram activados para garantir que a dívida do Estado português aos militares africanos que combateram no Exército na Guiné fosse saldada?
De: DIVERGENTE
Para: Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Quantos pedidos de pensões de invalidez e reforma foram feitos aos
serviços da Segurança Social por militares africanos que combateram em Angola, Guiné e Moçambique, depois de 1974?
De: DIVERGENTE
Para: Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Dos pedidos feitos, quantos foram deferidos e indeferidos?
De: DIVERGENTE
Para: Ministério dos Negócios Estrangeiros
Em Setembro de 2021, o presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou um projecto de lei de “reconhecimento e reparação” dos harkis. Portugal planeia fazer o mesmo?

As respostas dos órgãos da Administração Pública a estas perguntas nunca chegaram e, quase 50 anos depois, o Estado e o Governo português continuam a descartar-se das responsabilidades assumidas.

De: Ministério do Estado e das Finanças
Para: DIVERGENTE
“O alegado envolvimento de representantes do Ministério das Finanças remonta à década de 1980, pelo que não vemos qual o contributo que o actual Ministro de Estado e das Finanças poderá dar para o vosso trabalho.”
De: Ministério da Defesa Nacional
Para: DIVERGENTE
“A Senhora Ministra da Defesa Nacional declina o pedido para uma entrevista sobre o tema que está a tratar na reportagem.”
De: Ministério do Estado e das Finanças
Para: DIVERGENTE
“Para além da Resolução do Conselho de Ministros n.º 18/83, não foram encontrados [no arquivo e biblioteca do Ministério das Finanças] outros documentos sobre as negociações a que se refere nas suas perguntas.”
De: Ministério dos Negócios Estrangeiros
Para: DIVERGENTE
“O pedido acaba de ser encaminhado após ter sido detectada uma falha nos canais de email que impediu a identificação do mesmo.”
De: Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Para: DIVERGENTE
“No seguimento do seu pedido, vimos informar que estamos a preparar respostas às questões enviadas.”
De: Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Para: DIVERGENTE
“De acordo com a informação prestada pela Caixa Geral de Aposentações (CGA) não foram encontrados registos da documentação solicitada.”

Em Julho de 2020, foi aprovada pelo Parlamento português uma revisão ao Estatuto do Antigo Combatente ### que diz querer “fazer justiça” aos que participaram na Guerra Colonial e sublinha “o lugar digno dos combatentes na História de Portugal”. O documento abrange “única e exclusivamente aqueles que tenham feito descontos em Portugal e que sejam, por conseguinte, pensionistas do Estado português”. Em teoria, todos os africanos que combateram no Exército, que eram cidadãos portugueses e fizeram descontos até 1974, estão inseridos nesta prerrogativa. Na prática, só os que têm dinheiro para pagar um passaporte, comprar um voo de avião para Lisboa, e manter-se em Portugal, podem ambicionar iniciar o processo para requerer o que lhes foi prometido há quase 50 anos.

Galé e Joaquim desistiram pelo caminho. Abdulai e Malam passaram anos com papéis para trás e para a frente até conseguirem provar serem comandos do Exército português. Chamam-se a eles próprios “os sortudos”: “É muito difícil para quem ficou na Guiné conseguir a nacionalidade e a reforma. Sinto muita pena dos comandos que lá ficaram — pegaram nas armas comigo, entrámos naquela mata juntos, lutámos, e estão lá sem nada! Sem terem de comer. Há um colega meu que me ligou no outro dia a pedir dez euros para comprar açúcar… dez euros! Eu sinto muito, muito, muito, mas não posso fazer nada. A cada mês, poderiam dar-lhes, nem que fossem, 20 euros para comprar arroz, para comerem; mandarem um médico para os tratar uma vez por ano, não é muito para o Governo português”, lamenta Abdulai.

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“Morreu inchado como um porco a tentar ir para Portugal”

Julião Correia é um dos que não tiveram escolha senão ficar na Guiné: “Muitos amigos, irmãos, morreram sem chegar o dia de irem para Portugal. Tinham esperança de receber o seu salário, mas não puderam ir. Ficámos jogados aqui. Tenho esperança de ter a minha reforma, mas quando? Tenho 77 anos, vou fazer 78… estou a acabar. Quando é que eu ganho dinheiro para ir lá… Quando? Quem me leva?

Até agora, sinto-me português, tenho o documento de comando português, mas os portugueses não reconhecem as tropas que tinham na Guiné. Eu sou português para sempre porque jurei a minha pátria.”

Lamine Camará partilha de igual revolta: “Sinceramente, porque é que não fui para a luta de libertação? Virei-me contra os meus parentes, contra os meus irmãos… Portugal deve reconhecer os seus antigos parceiros que o serviram. Porque nós violámos o princípio da nossa própria terra, alinhámos com os colonizadores. Sinto-me português porque sou português. Se combati contra a bandeira do PAIGC, é à outra parte que pertenço.”

“Sou guineense, realmente sou guineense, mas se me perguntarem, vou dizer que pertenço a Portugal. Porque jurei a bandeira portuguesa. Se hoje passo mal é por causa dos portugueses, não do PAIGC. É triste, um homem lutar por uma causa e não ser reconhecido. Em outras partes do mundo… vê como os antigos combatentes que lutaram ao lado das tropas francesas são tratados…”, lamenta, referindo-se aos harkis — soldados argelinos que lutaram ao lado de França na Guerra de Independência da Argélia (1954-1962) — a quem, em Setembro de 2021, Emmanuel Macron pediu desculpa.

Julião Correia e Lamine Camará morreram poucos meses depois desta espécie de catarse. Foi já com a vida a precipitar-se para o fim que, pela primeira vez, muitos comandos africanos da Guiné falaram da guerra e da mágoa que guardam a Portugal; que, pela primeira vez, purgaram o que, há muito, pedia para ser desenterrado. VIDEO

As reivindicações dos militares africanos que combateram ao lado de Portugal no Exército não são um tema do passado. Ex-combatentes, filhos e viúvas continuam a manifestar-se todos os anos em frente à Embaixada de Portugal em Bissau. “Manifestámo-nos e não recebemos nenhuma resposta do coronel da embaixada [Nuno Duarte, adido militar da Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau]. Não fiquei satisfeito e fiz uma solicitação ao Ministério da Defesa e à Presidência da República de Portugal”, diz Amadu Djau. Confiante na legitimidade das exigências que faz, o presidente da Associação dos ex-Combatentes das Forças Armadas Portuguesas na Guiné-Bissau encabeçou, em Setembro de 2022, uma petição pública ###, dirigida ao presidente da Assembleia da República Portuguesa, na qual os veteranos guineenses das Forças Armadas pedem para voltar a ser portugueses.

Fernando Cabral

Soldado

 

1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Como é que não me haveria de sentir como um português? Naquela altura eram eles que mandavam. Se os portugueses quisessem tratar bem os comandos, não os teriam abandonado. Não falo com nenhum dos colegas que estão em Portugal. Houve um ano em que o Abdulai veio cá, sentámo-nos e divertimo-nos juntos. Era meu amigo, dávamo-nos bem. Há quantos anos é que o ‘tuga’ se foi embora? Diziam que tínhamos direito a pensão… Até hoje. Nem 25 francos. É até sairmos do caminho e morrermos. Quando morrermos, comam-no vocês.”

Braima Bari

Soldado

 

3.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné

“Pensava que Portugal ia fazer alguma coisa pelos comandos, mas não fez. Devia ter-nos ajudado, agora já não restam muitos: a maioria morreu, outros conseguiram ir para Portugal. Foi um abandono.”

O corpo de Mário Sani é incapaz de lhe acompanhar a lucidez, a fraqueza é tal que só com dificuldade consegue pôr um pé à frente do outro e andar meia dúzia de metros. Conta que, um daqueles dias, teve uma quebra de tensão e decidiu ir até Bissau, pedir apoio à Embaixada de Portugal:

“Vi lá um homem e pedi-lhe que me ajudasse, mas ele disse-me que não tinha meios, eu vi que ele também estava no seu trabalho e fui-me embora. Há colegas meus que conseguiram ir para Portugal e têm a reforma; eu não consegui ir porque estou doente e não tenho ninguém que me ajude, ninguém. Estou sozinho nesta casa. Agora, fico aqui à espera da morte.”

Houve uma altura em que Mário conservava a esperança de que o país ao qual tinha entregue a juventude viria para o ajudar. Mas, dois anos antes de ter morrido “inchado como um porco a tentar ir para Portugal”, essa ideia já nem sequer lhe passava pela cabeça. É Mama Sani quem descreve os últimos dias do irmão: “Quando ele ficou com o corpo inchado, enviei uma foto para o Jaime — outro irmão que está em Lisboa — na tentativa de o tirar daqui. Mas, em uma semana, acabou por falecer. Era o mais novo dos três.”

Antes de morrer, Mário pediu para ser sepultado no quintal de casa, ao lado do pai e do filho; a poucos metros do alpendre onde, pela primeira vez, contou a sua história. Na esperança, talvez, de que a morte pudesse, por fim, acabar com a solidão que lhe trespassou
a vida.

Joaquim Boquindi Mané deixou Portugal antes de conseguir a reforma, porque estava doente. Com um “tratamento da terra” conseguiu melhorar, mas não por muito tempo. Jara Sané viu o marido morrer-lhe nas mãos dia 16 de Março de 2020, uma segunda-feira, às 10 horas, antes de concretizar o sonho de casar pelo civil e dar a nacionalidade portuguesa à família: “Ele estava a tratar dos documentos para casarmos, mas poucos dias depois morreu.”

Helena nunca mais ouvirá a voz de Paulo, mas isso não impede que o marido lhe continue a ligar quase todas as semanas: “Ele escreve as mensagens num papel e depois pede a alguém para as ler. Pergunta-me como é que eu estou, como estão as crianças, se temos tido comida em casa… Eu digo-lhe para ele ficar descansado, para tratar da saúde, que eu estou bem, para não se preocupar.”

Quando Paulo foi para a guerra, Helena ficou sozinha a cuidar da casa e dos filhos. Cinquenta anos depois, vê a história a repetir-se: “Como é que me sinto? Tenho só preocupações na minha cabeça. Já viram o meu corpo? Antes era forte, mas, agora, são muitos pensamentos. Penso em como é que ele estará lá… na terra de outras pessoas. Quando estás em tua casa fazes aquilo que queres, mas na casa dos outros…”

Apesar de tudo, a esperança de Helena e Jara parece manter-se inabalável. Helena acredita que se Paulo conseguir a reforma, vão poder “arranjar a casa e descansar”; que, com esse dinheiro, o marido poderá ir e voltar a Portugal para fazer os tratamentos de que precisa. Jara também não desiste: “Preciso de ajuda para eu e os meus filhos conseguirmos os documentos e, depois disso, tratarmos da reforma. Talvez a embaixada nos possa ajudar.”

“Olá, é o Paulo, estou em Lisboa, estou em Portugal!” Era um domingo de manhã, 20 de Outubro de 2019, quando o telefone tocou. No dia seguinte, Paulo, o primo Romão e dois colegas dos Comandos — João Nandingna e Jorge Sanhá — seguiram de carro desde a estação de comboios de Queluz até ao Regimento de Comandos do Exército, na serra da Carregueira, em Sintra.

Passado o portão de entrada, Paulo afasta os ombros da cabeça, ergue as costas tanto quanto pode e cumprimenta com deferimento, um por um, todos os militares com quem se cruza. “Só entram duas pessoas com ele. Não vai o regimento todo, a médica não precisa de ver toda a gente”, alerta um oficial.

“Tem números de cá?”, pergunta-lhe a “doutora”. Não tinha. “Mas, ou seja, não tem nenhum número de identificação português, cartão de cidadão?”, insiste. Não tinha, a caderneta militar é a única prova da história que ali foi contar. Isso e as muitas mazelas que carrega no corpo. “E porque é que tem assim a voz?”, perguntou-lhe. Não sabia, há dois anos que procurava resposta para essa pergunta.

— Ele precisa de meter o processo, veio da Guiné, não tem nada constituído. É alferes graduado, feito na guerra, tem vários ferimentos em combate, conforme pode ver na caderneta. Precisamos de um relatório para poder ser considerado um deficiente das Forças Armadas”, explica o amigo João Nandingna.

— Mas, imagine, eu como médica posso no máximo ver as lesões e documentá-las. Para adquirir esse tipo de estatuto, é preciso declarar que esses ferimentos resultaram da guerra e eu não consigo fazer esse nexo de causalidade, porque não sei se foram causados na guerra ou noutra situação qualquer. Quero acreditar muito na vossa palavra, mas só posso observar as lesões e descrevê-las. O processo que querem tratar exige outro nível…

1461 dias e 4139 quilómetros depois, Paulo continua a tentar chegar a esse outro nível. Em 2020 fez um pedido de Junta Médica no Hospital das Forças Armadas, em Lisboa, para o qual nunca recebeu resposta. “Provavelmente o papel com a marcação terá levado descaminho”, respondeu o hospital, quando o advogado Fernando Ramos o questionou sobre o estado do processo.

O advogado diz ter sido informado “oficiosamente” de que existe vontade do chefe do Estado-Maior do Exército, o almirante António Silva Ribeiro, de reconhecer como portugueses todos os Comandos Africanos da Guiné, mas que “tal só seria possível com respaldo político”. Já o tenente-coronel Alexandre Varino, porta-voz e relações públicas do Estado-Maior-General das Forças Armadas, nega a veracidade desta informação: “Nunca o Sr. Almirante Chefe se pronunciou sobre essa matéria, porque a faculdade de atribuição de nacionalidade portuguesa aos Comandos Africanos da Guiné, que combateram no Exército entre 1971 e 1974, não é da esfera de competências legalmente cometidas ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, antes residindo nas atribuições do membro do governo responsável pela justiça”, diz por email.

Depois de uma operação a um cancro na garganta que o deixou mudo, Paulo vive, por favor, na casa das freiras Missionárias da Caridade (Madre Teresa de Calcutá), em Chelas, Lisboa. É aí onde aguarda que a vida possa, finalmente, tomar caminho e que o Estado português se responsabilize pelas feridas da guerra que o obrigou a travar. Só depois disso, “se Deus ajudar”, poderá voltar à casa onde Helena ainda o espera.

A história que se conta do 25 de Abril de 1974 é a de uma revolução sem sangue em que as armas foram cravos. Onde um grupo de militares brancos conquistou a liberdade através de uma revolução pacífica. À mesma velocidade com que esta versão foi sendo repetida, outra foi desvanecendo: a de que a liberdade conquistada pelos capitães de Abril acontece, também, porque estes combateram em África ao lado de militares negros.

Com o fim da ditadura, Portugal cortou abruptamente com o projecto de nação multirracial até então defendido. Apagou, tanto quanto pôde, o legado que décadas de ocupação colonial em África deixaram na sua identidade nacional, e vedou o direito à cidadania a homens e mulheres negros, outrora parte integrante do império.

Em Novembro de 2022, momento em que publicamos o último capítulo desta reportagem, pelo menos seis dos 20 comandos com quem falámos morreram. Na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique são centenas de milhares os homens a aguardar que Portugal reconheça a sua participação no Exército.

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