Para veres esta reportagem,
gira o telemóvel.

To see this report, hold
your phone in landscape.

O Facebook e o Instagram bloqueiam o formato de visualização desta reportagem.

Acede a www.divergente.pt através da barra de navegação do teu navegador (Chrome, Safari, Firefox, etc.) para poderes ler, ver e ouvir.

You cannot view this report through Facebook and Instagram.

Go directly to the website by typing the address www.divergente.pt directly into your browser (Chrome, Safari, Firefox, etc.) to get the full experience.

Um trabalho DIVERGENTE

A work by DIVERGENTE

“Isto não
é um nome
que se
entenda”

João Séco Mané só soube que se chamava João no dia em que entrou para a escola. Estava a mãe ainda grávida quando recebeu o aviso da administração colonial: “Logo que a criança nasça, o seu marido tem de vir cá fazer o registo.”

Fonte:

 

“Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo”, António E. Duarte Silva

 

 

 

Aconteceu a uma quarta-feira, dia 29 de Janeiro de 1948 em Nova Lamego (hoje cidade de Gabu), no Leste da Guiné. Por essa altura, sopravam os primeiros ventos do desenvolvimento português na então colónia: construíam-se estradas, erguiam-se pontes, e começava a falar-se de saúde, educação e saneamento.

Cumprindo as ordens que lhe tinham sido dadas, Bolom Mané dirigiu-se ao registo civil para anunciar o nascimento do filho. Foi recebido por um funcionário público que, já habituado àquelas lides, começou a reclamar — “isto não é um nome que se entenda” —, e lhe arranjou logo uma alternativa. João foi o nome que lhe calhou em sorte; em casa nunca deixou de ser, apenas, Séco Mané. Esta foi a primeira de muitas regras a que teria de se vergar para ser português.

João Séco Mané

Furriel

 

1.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Foi o meu pai quem me contou esta história. Disse-me que isto do registo começou praticamente no tempo em que eu nasci. Quase todas as pessoas da minha geração têm nomes portugueses. Metiam-nos na cabeça que tínhamos de mudar de nome, eles é que escolhiam, era tudo obrigação.”

Séco Mané tinha 15 anos quando o Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) atacou o quartel de Tite, em Janeiro de 1963, no episódio que ficaria conhecido nos livros de História como o início da guerra na Guiné. O conflito a que de um lado se chamou “Guerra de Libertação”, e do outro “Guerra Colonial”, talhou-lhe a vida ao meio. O pai foi preso em Setembro de 1965 pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) — acusado de ser conivente com os “terroristas”, permitindo que fossem buscar comida à horta da família; levaram-no para a ilha de Galinhas, uma prisão a céu aberto, onde o torturaram e espancaram. A mãe, com quatro filhos pela mão e um ainda no ventre, foi levada para o mato pelos guerrilheiros do PAIGC. Uns de um lado, outros de outro, todos reféns à força. No meio, obrigados a ir para a tropa, ficaram Séco Mané e o irmão Boquindi Mané que, feito militar, passou a ter Joaquim como nome próprio. Nessa altura, nenhum dos dois podia ainda imaginar que passariam dez anos sem ver a mãe e os irmãos.

João Séco Mané

Furriel

 

1.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Deveria ter ido para a tropa em 1967, mas estava revoltado com muita coisa, não queria… Mandaram-me ir de urgência falar com eles e lançaram o meu nome naquele livro do recenseamento militar. A 26 de Agosto de 1970, chamaram-me para a inspeção militar: os médicos revistavam-nos tal como viemos ao mundo e mandavam-nos apanhar umas bolinhas onde se tirava o futuro número da tropa. Tirei o 590, o número que tenho até hoje.”

A revolta que João Séco Mané não sentiu quando lhe impuseram o nome virou semente e, à entrada na vida adulta, era já impossível de esconder.

Na primeira metade do século XX, o recrutamento de africanos para as Forças Armadas Portuguesas (FAP) foi feito de forma assistemática. Mas, à medida que muitos territórios se foram libertando dos impérios europeus, Portugal sabia que a mesma sorte lhe poderia bater à porta. Sabia que, cedo ou tarde, precisaria de mais homens no Exército e impôs o serviço militar obrigatório aos “indígenas”.

Para conseguir reinar, era preciso fazer com que os nascidos em África se sujeitassem às normas do projecto colonial. Com esse intuito, em 1954, o Governo português promulgou o Estatuto dos Indígenas. O documento dividia os guineenses, moçambicanos e angolanos entre “não civilizados” e “civilizados”, e permitia aos segundos aceder à cidadania portuguesa desde que soubessem ler e escrever, apresentassem rendimentos suficientes para o sustento familiar e mostrassem um bom comportamento. http://link

Uma manobra de maquilhagem que manteria à margem, até ao final da ditadura, a maioria das pessoas negras. http://link

Fonte:

 

“African Troops in the Portuguese Colonial Army, 1961-1974:

Angola, Guinea-Bissau and Mozambique”, João Paulo Borges Coelho

A missão de colonizar

A missão de colonizar

A missão de colonizar

Fontes:

 

“Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo”, António E. Duarte Silva

 

“O modo português de estar no mundo: o luso-tropicalismo e a ideologia colonial
portuguesa (1933-1961)”, Cláudia Castelo

 

No decorrer da Guerra Fria, foi crescente a onda internacional que, apoiada tanto pela União Soviética como pelos Estados Unidos da América, pressionou Portugal a conceder a autodeterminação aos povos africanos dos territórios que ocupava.

Face a este clima, e na sequência de um maciço trabalho ideológico para passar a ideia de um império integrador, o Estado português revogou o Acto Colonial e encetou uma viragem jurídico-política que culminou, em 1961, com o fim do Estatuto dos Indígenas. Desde então, todos os que nasciam nos territórios ultramarinos passaram a poder recensear-se como cidadãos portugueses.

A missão de colonizar

Acto Colonial [1930-1951]

É o primeiro documento constitucional do Estado Novo.

Aplica-se a todos os territórios portugueses fora da Europa e define as colónias em África e a sua regulação como parte de Portugal.

Distingue a população negra de Angola, Moçambique e Guiné entre “assimilada” e “não assimilada”.

A missão de colonizar

Lei orgânica do Ultramar [1953]

Abole o termo “assimilado”.

As colónias passam a chamar-se províncias ultramarinas.

As províncias ultramarinas são dotadas de autonomia administrativa e financeira.

O Ministério das Colónias passa a chamar-se Ministério do Ultramar.

A Guiné Portuguesa passa a chamar-se Província da Guiné.

A missão de colonizar

Estatuto dos Indígenas [1954]

Define os direitos e deveres da população das colónias portuguesas.

Mantém a distinção entre pessoas negras “civilizadas” e “não civilizadas”.

As pessoas negras “civilizadas” passam a poder aceder à cidadania portuguesa.

A missão de colonizar

Decreto-Lei nº43893 [1961]

Revoga o Estatuto dos Indígenas e abandona a distinção entre pessoas “civilizadas” e “não civilizadas”.

 

Reconhece os “usos e costumes locais” das províncias ultramarinas.

Joaquim Boquindi Mané

Furriel

 

1.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“O PAIGC estava no mato e nós juntámo-nos aos portugueses, fomos os filhos que foram obrigados a ir para a tropa. Nós, pretos, fazíamos três anos, os brancos faziam só dois e iam embora. Se nos dessem algum galão, ficávamos cinco anos.”

Serviço militar obrigatório

Serviço militar obrigatório

Serviço militar obrigatório

Desde 1937 que, por lei, todos os homens nascidos ou naturalizados na metrópole estavam obrigados a cumprir o serviço militar. No caso dos portugueses do Ultramar, esta imposição foi feita apenas em 1953. A partir desse ano, os homens portugueses com mais de 18 anos, nascidos em África, foram obrigados a integrar as Forças Armadas.

Serviço militar obrigatório

Lei do recrutamento e serviço militar na metrópole (1937)

Serviço militar obrigatório

Lei do recrutamento e serviço militar no Ultramar (1953)

Serviço militar obrigatório

CONTAMOS COM O TEU APOIO PARA CONTINUAR A REVELAR SILÊNCIOS.

WE COUNT ON YOU TO KEEP ON UNVEILING SILENCES.

“Quando nasces nas mãos de alguém, pensas que tudo o que essa pessoa te diz é verdade, ou não?”

Ao contrário de Angola e Moçambique, onde muitos portugueses procuraram refúgio para fugir à miséria e tacanhez impostas pela ditadura na metrópole, a Guiné não era uma colónia de povoamento, e foi sempre considerada um território de menor importância. Só a partir da década de 1960, com o envio de tropas para a guerra, é que os guineenses tiveram contacto maciço com portugueses brancos. http://link

Até então, a figura do Estado carrasco, que aplicava castigos corporais e obrigava ao pagamento do imposto, tinha como principal rosto os funcionários públicos cabo-verdianos, para aqui enviados pelo regime para fazer cumprir os desígnios do império.

Fontes:

 

“História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia (1841–1936)”,

René Pélissier

 

“A formação da elite política na Guiné-Bissau”, Carlos Cardoso

A colónia de outra colónia

A colónia de outra colónia

A colónia de outra colónia

Fontes:

 

“O meu testemunho: uma luta, um partido, dois países”,

Aristides Pereira

 

“A formação da elite política na Guiné-Bissau”,

Carlos Cardoso

Desde o início dos anos 1400 e durante mais de três séculos, a ação dos portugueses na costa ocidental africana resume-se a actividades comerciais — das quais se destacam o tráfico de pessoas escravizadas. Até 1879, o território que hoje se denomina Guiné-Bissau chamava-se “Guiné de Cabo Verde”, era gerido a partir do arquipélago, e os funcionários públicos que aí representavam o Estado português eram, quase na totalidade, cabo-verdianos.

A colónia de outra colónia
A colónia de outra colónia

Entre cabo-verdianos e guineenses existiam diferenças estruturais, que se revelaram uma das pontas mais frágeis do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde. Uma divisão que, nos últimos anos da guerra, António de Spínola instrumentalizou numa tentativa de fragilizar o PAIGC.

Galé Jaló

Soldado

 

3.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Conheci o Cabral no tempo em que ele fazia o mapa da Guiné [recenseamento agrícola]. Ele morava aqui em Quebo. Tinha uma mota de três rodas, nós corríamos atrás dele de bicicleta. O que aconteceu até ele ir para o mato, isso não sei, só ouvi que começou a guerra. Não sabia mesmo qual era o projecto do Cabral. Não sabia ler, naquele tempo era aluno de um marabu, não ia à escola. Não sabíamos o que ia acontecer: aquilo que não viste, não sabes o que vai ser.”

Quando, em 1952, Amílcar Cabral, aquele que viria a ser o líder pela independência da Guiné e Cabo Verde, regressou à Guiné — desta vez como funcionário do Ministério do Ultramar —, tinham-se passado 20 anos desde que pisara a terra que o viu nascer. Vinte anos desde que toda a família se mudara da cidade de Bafatá, onde Juvenal Cabral trabalhava como professor, para a ilha de Santiago, em Cabo-Verde, de onde o patriarca era originário.

Aristides Pereira

Líder do PAIGC depois da morte

de Amílcar Cabral

“Em Bissau, às seis da tarde havia aquele apito para lembrar aos trabalhadores nativos que prestavam qualquer serviço na cidade que tinham que sair da zona. (…) E nós outros, pretos também, éramos considerados civilizados. Aí está a diferenciação que o próprio colonialista criou. Se formos ver a coisa, querendo ou não, qualquer guineense tinha de olhar para mim como um fulano vendido ao colonialista porque eu estava na zona dos brancos. E só depois de eu lá estar, só depois de muito avanço, só depois de praticamente começarem os movimentos emancipalistas nas ex-colónias é que aparece a única possibilidade de o indígena guineense poder tornar-se ‘civilizado’, porque dantes não havia nada disto. Bissau era praticamente a Amura e aquelas casinhas que hoje circunscrevem o actual Bissau velho.

O resto era Chão de Papel, na altura chamada a zona indígena.”

"O meu testemunho: uma luta, um partido, dois países", Aristides Pereira

Amílcar Cabral era, por isso, um desconhecido para a maioria dos guineenses quando o PAIGC anunciou o início da guerra armada e fez da união de Cabo Verde e da Guiné condição de partida para a luta pela autodeterminação dos seus povos.

Fontes:

 

“Amílcar Cabral, ensaio de biografia política”, Mário de Andrade

 

“Unidade e luta II: a práctica revolucionária”, Amílcar Cabral

 

Como malabaristas em cima de uma corda, os guineenses tentavam equilibrar-se no epicentro de um fogo cruzado. O lado em que caíram foi, mais do que uma escolha política ou ideológica, aquele para o qual foram empurrados. A sorte traçou-lhes o destino, e a sobrevivência dependia, em muito, da resignação com que a aceitavam. A linha que separava as partes era porosa.

O caminho até à luta da independência

O caminho até à luta da independência

O caminho até à luta da independência

Fontes:

 

“Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC” e “Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo”, António E. Duarte Rodrigues

 

“3 de agosto de 1959: Massacre de Pidjiguiti, Bissau”, Sílvia Roque

Nos anos 1950, vivia-se na Guiné uma aparente aceitação da presença portuguesa. Os primeiros sinais de convulsão política e social começaram a sentir-se com a criação do Partido Socialista da Guiné, em 1947, e do Movimento para a Independência Nacional da Guiné (MING), em 1955. Mas o episódio que mais eco daria às ganas de libertação do regime colonial só aconteceria uma década depois: a 3 de Agosto de 1959, os trabalhadores do Porto de Pindjiguiti, em Bissau, fizeram greve a reivindicar melhores salários e a administração portuguesa reprimiu a iniciativa, que acabou com 50 mortos e cerca de cem feridos.

O caminho até à luta da independência

Fonte:

 

“Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau”, Leopoldo Amado

O cenário de aparente calma ficou para sempre ameaçado e foram vários os grupos a reivindicar a independência da Guiné, ou a sua integração numa comunidade lusófona. Em 1961, quando Amílcar Cabral registou formalmente o PAIGC (que começou por chamar-se Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde — PAI) existiam já, pelo menos, nove organizações políticas a tentar combater o colonialismo português no território. Entre um dos seus líderes, estava François Mendy, do Movimento de Libertação da Guiné (MLG), que queria a independência para os guineenses e acusava os apoiantes do partido de Cabral de os quererem dominar.

O caminho até à luta da independência

“É forçoso a constatação de que nunca foi indiferente ao guineense o papel colaboracionista que o elemento cabo-verdiano desempenhou em todas as fases do processo colonial da Guiné: comércio costeiro, ‘pacificação’, ‘crioulização social’, estabelecimento da administração com características repressivas, etc.”

Leopoldo Amado, historiador,

no livro “Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau”

O caminho até à luta da independência

Fontes:

 

“Unidade e luta I: a arma da teoria” e “Unidade e luta II: a práctica revolucionária”,
Amílcar Cabral

Amílcar Cabral só conheceu de perto a realidade do povo guineense quando o Estado colonial o contratou como engenheiro agrónomo, para realizar o primeiro recenseamento agrícola na Guiné. Encontrou pessoas sujeitas “à mais violenta exploração do homem pelo homem”, “objecto da mais monstruosa opressão nacional, social, e cultural”, “vítimas de uma bárbara repressão militar e política”, cenário que motivou a luta que viria a encabeçar.

Para tal, procurou apoio internacional e, nas décadas de 1950 e 1960, encetou uma verdadeira jornada de denúncia do colonialismo, que culminou com as Nações Unidas a não reconhecer as províncias ultramarinas como parte integrante da nação portuguesa, e a aplicar uma série de resoluções que condenavam Portugal.

O caminho até à luta da independência

Fontes:

 

“O meu testemunho: uma luta, um partido, dois países”, Aristides Pereira

 

“Africa’s quiet war: Portuguese Guinea”, William Zartman

Só a 3 de Agosto de 1961, pressionado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) — que equacionou reconhecer as acções do MLG no Norte da Guiné como o início da luta armada —, Amílcar Cabral somou às actividades de cariz político a “passagem à acção directa”. O início da luta armada só se viria, contudo, a efetivar em Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite. “A mais imediata ameaça ao colonialismo português em África” era agora palpável.

O caminho até à luta da independência

Fonte:

 

“Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau”,

Leopoldo Amado

A estratégia do PAIGC foi, até ao fim, a de uma guerra de guerrilha influenciada pelas teorias de outras guerras revolucionárias, com tropas instaladas nos países fronteiriços e em pontos do território guineense inacessíveis ao Exército português.

O caminho até à luta da independência

Fontes:

 

“A formação da elite política na Guiné-Bissau”,
Carlos Cardoso

 

“O fazedor de utopias: uma biografia de Amílcar Cabral”, António Tomás

Com o apoio de Sékou Turé, líder da independência da Guiné-Conacri que se tornaria um ditador no poder até 1984, toda a acção do PAIGC foi organizada a partir dos escritórios do partido em Conacri. Aqui, estavam sobretudo fixados os quadros cabo-verdianos que constituíam a cúpula de decisão. Já no palco de batalha, os guerrilheiros eram, quase na totalidade, guineenses. A elite da luta recrutou os seus membros nas camadas mais baixas da sociedade colonial.

Os primeiros pensavam a guerra, os segundos executavam-na.

António de Spínola

Governador-geral

da Guiné

“Em relação à situação militar poder-se-á dizer que, subtraindo as populações às acções dos guerrilheiros, eles ficavam mais instáveis e fragilizados. Estávamos nessa altura em condições de proceder à política como sendo a continuação da guerra por outros meios. Assim, colocávamos o PAIGC em situação tal, que ele próprio sentiria necessidade de negociar.”

Em 1968, o pai dos irmãos Séco e Boquindi Mané ainda se encontrava cativo quando António de Spínola, pouco depois de ter sido designado governador-geral da Guiné, ordenou a libertação dos presos do Tarrafal e da ilha de Galinhas. O general do monóculo, que antes tinha sido destacado como comandante do Batalhão de Cavalaria 345 em Angola, trazia ganas de mudança e apresentava-se como o antídoto do seu antecessor, Arnaldo Schulz. Substituiu a estratégia defensiva de repressão e bombardeamentos indiscriminados pela conquista das pessoas, prometendo-lhes mais saúde, educação, infra-estruturas e segurança. Queria que os guineenses deixassem de aderir à causa do movimento de libertação e, para isso, garantiu-lhes bem-estar e melhores condições de vida. Chamou a este projecto “Por uma Guiné Melhor”, o mesmo que Amílcar Cabral apelidou de política de “sorriso e sangue”.

Fontes:

 

“Spínola”, Luís Nuno Rodrigues

 

“Guerra Colonial”, Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes

Mário Umarú Sani

Soldado

 

1.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Ele falava sempre muito bem, dava-nos coragem durante a instrução militar. Não sabíamos que estávamos a ser enganados, que era mobilização. Quando nasces nas mãos de alguém, pensas que tudo o que essa pessoa te diz é verdade, ou não? Não conhecia a finalidade da guerra, achava só que o PAIGC era o agressor. Só depois da independência vim a perceber.”

Mário Umarú Sani descreve ao detalhe o momento em que viu Spínola pela primeira vez. Tinha acabado de ser ferido numa perna quando o governador o foi visitar ao hospital. Disse-lhe para ter coragem, defender a terra, defender a bandeira, e até lhe apertou a mão — a mesma mão a que, anos mais tarde, seriam arrancadas as unhas como castigo pelo serviço prestado a Portugal. Mário recorda um “grande homem” e um “político com uma grande cabeça”. O governador e chefe das Forças Armadas apostava numa guerra psicológica e de propaganda, gabando-se de “conquistar as almas” não por via da coacção física mas da persuasão.

Áreas controladas pelo PAIGC

Areas controlled by the PAIGC

Julho 1962
JUNHO 1963
ABRIL 1964
MAIO 1965
JUNHO 1967
OUTUBRO 1967
ABRIL 1968
SETEMBRO 1968
MAIO 1969
OUTUBRO 1969
ABRIL 1970
ABRIL 1971
July 1962
June 1963
April 1964
May 1965
June 1967
October 1967
April 1968
September 1968
May 1969
October 1969
April 1970
April 1971

O PAIGC dominava já mais de metade do território quando Spínola se viu obrigado a apostar na tropa africana e a conferir-lhe funções de maior importância no Exército. Estes homens foram a fresta que encontrou para fazer face à guerrilha liderada por Amílcar Cabral, mais bem preparada do que previra, e à emergência de uma opinião pública cada vez mais contrária à guerra — farta de ver filhos, maridos e pais morrerem lá longe.  http://link

Entre 1961 e 1973, o número de africanos que integravam as FAP na Guiné passou de 4736 para 32 035 homens, os salários das tropas foram aumentados, a instrução reforçada e as unidades de combate reorganizadas. http://link

Fonte:

 

“Portugal e o Futuro”, António de Spínola

Luís Hernâni Quecói Turé

Soldado

 

2.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Se tivesses a tua farda, a tua arma, não diziam que estavas com gente má, que apoiavas o PAIGC, que eras isto ou aquilo.”

Com apenas sete anos, Luís Hernâni Quecói Turé foi levado para as milícias e, como tantos outros, passou a garantir a autodefesa da cidade de Farim, onde vivia. Tinha medo, claro, era uma criança; mas recusar uma ordem do Estado não era opção em que se pudesse sequer pensar. Depois disso, nunca mais deixou de combater ao lado de Portugal. No dia em que jurou bandeira, anos antes de ser tratado como um bicho a quem extirparam os dentes por esse mesmo juramento, Quecói Turé conheceu António de Spínola e confirma que uma das suas preocupações era proteger as pessoas da violência da guerra: “Não queria que abusássemos de ninguém, que feríssemos a população, sobretudo as crianças. Se te visse a humilhar alguém, tinhas logo problemas.”

Quando aceitou o cargo de governador, António de Spínola exigiu o reforço do orçamento da PIDE na Guiné, que aqui operava desde 1957.

Considerava essencial ter informadores infiltrados no seio das populações e foi durante a sua governação que os inspectores da polícia política tiveram uma acção mais repressiva.

Fonte:

“Spínola”, Luís Nuno Rodrigues

Ser colonizado e fazer a guerra no seio do exército colonial estava longe, por isso, de ser uma opção voluntária e sem constrangimentos: dizer “não” significava ser perseguido.

CONTAMOS COM O TEU APOIO PARA CONTINUAR A REVELAR SILÊNCIOS.

WE COUNT ON YOU TO KEEP ON UNVEILING SILENCES.

“Naquele tempo
em que fui enganado,
o meu trabalho
era jogar à bola”

Luís Sambu

Soldado

 

1.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Era futebolista, extremo-esquerdo na equipa dos Balantas, jogámos contra o Benfica, o Sporting, a UDIB [União Desportiva Internacional de Bissau], o Canchungo… joguei quase até ir para a guerra. Com a vida militar, tive de deixar o futebol. Naquele tempo em que fui enganado, o meu trabalho era jogar à bola — correr os 100 metros, fazer preparação física. O Spínola chegou à Guiné antes de eu ir para a tropa, foi ele quem formou os comandos africanos. Os portugueses sozinhos já não conseguiam, puseram pretos contra pretos para os brancos deixarem de se bater.”

Umarú Sani e Quecói Turé fizeram parte do grupo de mais 550 homens que, entre 1970 e 1974, constituíram as três companhias de comandos africanos da Guiné. Uma tropa que se tornou no primeiro grupo de elite da história das FAP composto apenas por homens negros. Sani tinha 21 anos, Turé apenas 14, quando começaram a treinar para serem comandos. Luís Sambu também foi obrigado a juntar-se quando, aos 19 anos, ainda fintava a vida entre a lavoura e o futebol. Queria ser jogador profissional, mas esse sonho virou para sempre alquimia — como “era rijo e estava forte” foi escolhido.

“A propaganda colonial foi concedendo uma visibilidade crescente aos combatentes africanos das FAP e às suas virtudes heróicas, que promoveu e exaltou publicamente, em diversas ocasiões. A imprensa portuguesa, ao apresentar o combatente africano como um sujeito no qual as Forças Armadas e o Estado português depositavam a sua total confiança, e ao caracterizá-lo como um soldado disciplinado, corajoso, obediente e dedicado aos seus superiores, leal e solidário com os seus companheiros de armas (...] renovou argumentos para reivindicar e legitimar a dominação em África.”

Luís Nuno Rodrigues no livro "Spínola"

Serifo Djau

Soldado

 

2.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Na instrução militar, diziam-nos: ‘Aqueles que quiserem ir para os comandos que levantem o braço.’ Depois de se jurar proteger a pátria, começava-se a receber a palavra dos comandos, o emblema, a boina e o punhal. Mas houve alguns que não conseguiram acabar o curso, foram eliminados por problemas de respiração e tosse. O comando tinha sangue quente, mas era sempre frio.”

Fernando Cabral

Soldado

 

1.ª Companhia

de Comandos Africanos da Guiné

“Quando o meu nome saiu para ir para a tropa, quisesse ou não quisesse, tinha de ir, era a lei que dizia isso. Alguns pediam para ir para os comandos, mas não era assim com todos. No fim da instrução, perguntavam quem é que queria ser comando, eu pelo menos, não levantei a mão. Queria ser civil, não queria dedicar a minha vida à guerra.”

A farda de comando era um escudo que protegia estes homens da pobreza, da dureza do trabalho do campo, da exclusão… Mesmo os que foram obrigados, não negam que rapidamente se habituaram aos privilégios de que passaram a ser detentores, quando comparados com a maioria da população negra. O salário fixo permitia pôr comida na mesa da família, começar a construir uma casa, adquirir bens que, de outra forma, não estariam ao alcance. Spínola agigantou-lhes o moral, fê-los acreditar que eram importantes, convenceu-os de que seriam os futuros líderes da Guiné, os que comandariam o país quando o PAIGC saísse derrotado. Num acto de redenção, foi também aos comandos africanos que dedicou palavras especiais antes de sair da Guiné em Agosto de 1973:

“E embora as minhas palavras sejam para todos, sem distinção de origem ou hierarquia, elas destinam-se em especial aos soldados e marinheiros europeus e africanos. (…) Dirijo-me também aos africanos que encontraram, finalmente, na justiça, na valorização e dignificação humana o caminho da verdadeira independência, e que por ele optaram empunhar as armas. E dentro de vós, a primeira palavra é para os ‘comandos africanos’ que se cobriram de glória em defesa do ‘chão’ português da Guiné e das suas martirizadas gentes. Formulo votos para que o vosso ânimo não esmoreça na luta para a construção de uma fraterna comunidade luso-africana, em cujo seio os guinéus se sintam conscientes da sua dignidade de homens e orgulhosos da sua qualidade de cidadãos livres.”

António de Spínola

Fonte:

“Por uma portugalidade renovada”, António de Spínola

Só foi possível Portugal manter-se em África até 1974 porque criou um exército regular que permitiu às tropas metropolitanas serem rendidas por soldados locais. Numa altura em que a Organização das Nações Unidas já tinha reconhecido o direito dos povos à autodeterminação, estes homens ajudaram o império a passar a imagem de uma nação integradora e multirracial — a representação do “bom colonialismo” que inebria até hoje os manuais escolares.

A força coerciva e manipuladora do regime colonial empurrou os comandos africanos da Guiné para a guerra. As promessas feitas por António de Spínola levaram-nos a combater contra aqueles que se batiam para fazer deles pessoas com direitos iguais.

Na maioria dos casos, os guineenses que integraram as FAP não fizeram uma escolha ideológica — as circunstâncias e, de certa forma, a sede de reconhecimento empurraram-nos para lá. Mas o doce do “açúcar” que os aliciou como se fossem abelhas acabaria por, anos mais tarde, escorrer-lhes pelo corpo em forma de sangue.

Por graficamente não ser possível a identificação individual de cada uma das imagens, enumeramos aqui a sua origem e cota.

As it is not possible to individually identify each of the images within the body of the work, we specify here , in order of appearance, the origin of each image and its reference number.

CONTAMOS COM O TEU APOIO PARA CONTINUAR A REVELAR SILÊNCIOS.

WE COUNT ON YOU TO KEEP ON UNVEILING SILENCES.

CONTAMOS COM O TEU APOIO PARA CONTINUAR A REVELAR SILÊNCIOS.

WE COUNT ON YOU TO KEEP ON UNVEILING SILENCES.